Thursday, December 28, 2006

Indignação

"Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos.

Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da alma de todos os que me cercam,

Tomar o sonho por real, viver demasiado os sonhos deu-me este espinho à rosa falsa da minha sonhada vida: que nem os sonhos me agradam, porque lhes acho defeitos.

Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me oculto o rumor da vida alheia ao meu olhá-la, do outro lado.

Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer coisa, como também se alegram do explicado, e se incluem na dor universal.

Eu não me queixo pelo mundo. Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Sofro e queixo-me, mas não sei se o que há de geral é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não?

Eu sofro, não sei se merecidamente (corça perseguida)

Eu não sou pessimista, sou triste"

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Friday, December 22, 2006

ideia brilhante

Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.

Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade.

Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação.

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Wednesday, December 06, 2006

português vs. espanhol

Em referência às vogais, a realidade da língua oral é muito mais complexa do que dá a entender o uso aparentemente simples e regular das cinco letras latinas vogais na escrita. O que há são 7 fonemas vocálicos multiplicados em muitos alofones. Os falantes de lígnua espanhola têm, em regra, dificuldade de entender o português falado, apesar da grande semelhança entre as duas línguas, por causa dessa complexidade em contraste com a relativa simplicidade e consistência do sistema vocálico espanhol. Portugueses e brasileiros, ao contrário, acompanham razoavelmente bem o espanhol falado, porque se defrontam com um jogo de timbres vocálicos menos e menos variável que o seu próprio.

(Estrutura da Língua Portuguesa, Joaquim Mattoso Camara Jr.)

Friday, December 01, 2006

Emoções Confusas

...no desalinho triste das minhas emoções confusas...

Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma verdade obtida. Desenrola-se-me na alma desatenta esta paisagem de abdicações - áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se emaranha e se visualiza pobre no desalinho triste das minhas sensações confusas.


(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, 47)

Monday, November 27, 2006

Five-Cent Nickel Again

só para lembrar um post antigo
http://leoca.blogspot.com/2005/07/nickel.html

Saturday, November 25, 2006

Biografia

Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.

Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações.

Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.

Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas...Intervalo...Nada.

De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo... Sim, croché...

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

LITANIA

Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o céu.
(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Tuesday, November 07, 2006

cachorro-quente

Cachorro-quente (hot dog) era usualmente chamado de 'frankfurters' (em referência à cidade de Frankfurt na Alemanha), o nome 'cachorro quente' tornou-se popular apenas nos anos 1890. Em 1830, existiam rumores de que os cachorros de rua eram utilizado para se fazer salsichas; nos anos 1840, o termo 'sanduíche de cachorro' (dog sandwich) foi utilizado. Nos anos 18060 uma canção popular 'Der Deitcher's Dog' (escrita por Septimus Winner) cuja letra contém o seguinte


Und sausage is goot: Baloney, of course,
Oh! where, oh! where can he be?
Dey makes ‘em mit dog, und dey makes ‘em mit horse:
I guess dey makes ‘em mit he.


O termo 'cachorro-quente' foi pela primeira vez utilizado numa piada envolvendo o ofegar (pant) do cachorro que foi amplamente divulgado nos anos 1870 "What’s the difference between a chilly man and a hot dog? One wears a great coat, and the other pants." (Qual a diferença entre um homem friorento e um cachorro quente? Um veste um casaco, e o outro ofega.)


(veja mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Hot_dog)

Cheio de Nove Horas

A história consagrou as nove horas (da noite) como a hora em que as pessoas deviam se recolher. Era a hora de interromper uma visita, um jogo ou qualquer diversão e ir para casa. O Brasil adotou esse costume, documentado em diversos textos, inclusive num poeminha popular do século XIX:

Nove hora! Nove hora!
Quem é de dentro, dentro!
Quem é de fora, fora!


Nessa época, o regulamento do serviço policial do Rio de Janeiro e de outras cidades brasileiras tinha um dispositivo advertindo que, depois das nove horas, 'ninguém será isento de ser apalpado e revistado'.

E foi nesse mesmos século que surgiu a adjetivação 'cheio de nove horas' para o sujeito cheio de regras, de censuras e de limites às alegrias alheias.

(A Casa da Mãe Joana, Reinaldo Pimenta)

signo lingüístico

Os termos implicados no signo lingüístico são ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação.

O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreite) psíquica desse som, a representação de que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la 'material', é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito geralmente mais abstrato.

O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema. E porque as palavras da língua são para nós imagens acústicas, cumpre avitar falar dos "fonemas" de que se compõem. Esse termo, que implica uma idéia de ação vocal, não pode convir senão à palavra falada, à realização da imagem interior no discurso. Com falar de sons e símbolos de uma palavra, evita-se o mal-estendimento, desde que nos recordemos tratar-se de imagem acústica

(Ferdiand de Saussure)

palavras e símbolos

"os sons emitidos pela voz são símbolos dos estados de alma, e as palavras escritas, os símbolos das palavras emitidas pela voz. E assim como a escrita não é a mesma para todos os homens, as palavras pronunciadas também não são as mesmas, embora os estados de alma dos quais essas expressões constituem os signos imediatos sejam idênticos para todos, como são idênticas também as coisas das quais esses estados são imagens."
(Tzvetan Todorov)

teorias do símbolo

Acrescentamos que, partidário da relação imotivada entre sons e sentidos, Aristóteles é sensível aos problemas de polissemia e de sinonímia que a ilustram; ele a retoma diversas vezes, como por exemplo nas Refutações sofísticas ou na Retórica III. Essas discussões comprovam efetivamente a não-coincidência entre sentido e referente. "Não é verdade, como pretendia Bryson, que não haveria palavras obscenas, uma vez que dizer isto em vez daquilo significa sempre a mesma coisa; é um erro, pois uma palavra pode ser mais precisa, mais semelhante, mais adequada para pôr a coisa diante dos olhos". Mais geralmente, mas também de forma mais complexa, o termo logos designa, em determinados textos, o que a palavra significa, por oposição às próprias coisas, cf. por exemplo Metafísica, "A noção, significante pelo nome, é a própria definição da coisa".
(Tzevetan Todorov)

Saturday, October 21, 2006

Theory of Evolution

"Descended from monkeys? My dear, let us hope that is not true!
But if it is true, let us hope that it not become widely known!"
(The wife of the bishop of Worcester, hearing of Darwin's Theory of Evolution)

Wednesday, October 04, 2006

Objetos e Signos na Linguagem

Em seu Cours de linguistique générale, Saussure se coloca como um dos mais firmes críticos daqueles que entendem a linguagem como nomenclatura. A linguagem não é constituída fundamentalmente por nomes dados às coisas. Que objetos diferentes sejam designados cavalo, mesa ou árvore não passa de um acidente - prova está, que podem ser chamados de horse, table ou tree, ou ainda de Pferd, Tisch ou Baum. O signo lingüístico não é constituído pela união de uma coisa e um nome mas pela união de um conceito e uma imagem acústica. Na opinião de Safouan, "se um objeto pudesse, ou o que quer que fosse, ser o termo sobre o qual está fixado o signo, a lingüística cessaria instantaneamente de ser o que é, desde o ápice até a base". Poderíamos acrescentar que não apenas a lingüística deixaria de existir, mas que a própria linguagem seria atingida no seu ponto essencial: o da arbitrariedade do signo.

Se fosse possível estabelecer uma relação fixa entre o objeto e o signo, a linguagem seria transformada num mero sistema de sinais análogo aos que se estabelecem no mundo animal. O que o signo lingüístico une é um significado e um significante, e é precisamente esta união que é apontada como arbitrária, como não natural. Esse princípio da arbitrariedade do signo faz da linguagem um sistema de relações no interior do qual há apenas diferenças. Nem o significante, nem o significado são determinados de antemão, o que leva Robert Godel a afirmar que não há inicial na língua.

(Introdução à Metapsicologia Freudiana, Luiz Alfredo Garcia-Roza)

Tuesday, October 03, 2006

Hamburguer

A história do Hamburger começa no tempo dos Mongois (século XIII) que carregavam bolinhos de carne de cordeiro ou carneiro como suprimento. Os viajantes mongois costumavam colocar a carne sob a cela. Ao longo da viagem a carne seria amaciada com o galope e posteriormente consumida ainda crú. Quando os mongois invadiram Moscou, essa comida foi levada e adotada, sendo chamada de "bife tártaro", referindo-se aos invasores que também eram conhecidos como Tártaros. Mais tarde, a comida foi levada para Hamburgo na Alemanha, por meio de navios que visitavam os portos bálticos russos. Por ser uma comida simples e barata, foi rapidamente adotada pelos trabalhadores do região portuária de Hamburgo, e em decorrência do grande comércio com os Estados Unidos, a comida foi parar em Nova York, onde foi pela primeira vez, grelhada e chamada de "bife à moda de Hamburgo", ou simplesmente, "Hamburger", o que faz referência ao modo alemão de chamar as comidas típicas, como por exemplo, a comida típica de Frankfurt (o cachorro-quente) é chamada "Frankfurter" e "Berliner" como é chamado o doughnut.

dicotomia

Freud assume com satisfação um "fato [...] confirmado por outros lingüistas [de que] as línguas primitivas [...] possuem inicialmente uma só palavra para os dois pontos opostos de uma série de qualidade ou de ações (forte-fraco, velho-jovem, próximo-afastado, unido-separado...)". Os lingüistas escreveram isso, portanto a dúvida está eliminada: "Abel [o lingüista, suposto mestre do saber] nota que o fato é constante em egípcio antigo e observa que se pode encontrar vestígios do mesmo nas línguas semíticas e indo-européias". Assim, a palavra latina altus significa "alto" e "profundo", e a grega aidós, "honra" e "vergonha", a árabe tagasmara, "ser justo" e "ser injusto" etc. Aí está algo próprio para confortar a hipótese de Freud segundo a qual o sonho "prima em reunir os contrários e em representá-lo em um único objeto". Mas a exitência de "línguas primitivas" (ver a "horda primitiva"...) é ilusória; quanto às línguas antigas ou modernas sobre as quais é possível trabalhar, não basta, como faz Abel, "juntar tudo que se assemelha" para concluir que "essas línguas, por mais arcaicas que sejam supostas, escapam ao 'princípio de contradição' afetando como uma mesma expressão duas noções mutuamente excludentes ou simplesmente contrárias". A simples crítica filosófica "díssipa essas miragens".

(Lingüística e Psicanálise, Michel Arrivé)

Wednesday, September 20, 2006

Dalí e Freud

Salvador Dalí dizia que o cérebro de Sigmund Freud era, morfologicamente, um caracol. Dalí era um grande admirador de Freud. Seu encanto pelo trabalho do psicanalista começou quando, aos 21 anos, leu "A Interpretação dos sonhos". Como um admirador de Freud, Dalí teve sua visão de mundo moldada, alterada ou distorcida pelas idéias da teoria psicanalítica. Dalí tentava um encontro com Freud há quatro anos. Tal encontro só tornou-se possível com a ida de Freud para Londres devido à anexação da Áustria à Alemanha, quando sua filha mais velha Anna foi levada pela Gestapo para interrogatório. Freud considerava todos os surrealistas como "completos tolos". Para promover o encontro foi necessário o intermédio de Stefan Zweig, um admirador da obra de Dalí e amigo de Freud. Em 19 de Julho de 1938 ocorreu o encontro do pai da psicanálise e o surrealista conhecido por derreter relógios, quem levou como presente o quadro "A Metamorfose de Narciso".

Dalí aproveitou a ocasião para fazer um retrato de Freud.

Bohlen-Pierce scale

"J.R. Pierce, lately of Stanford University, has recently proposed a new musical scale based on dividing the frequency ratio 3:1 (instead of the 2:1 octave) into 13 (instead of 12) equal parts. This scale matches such simples integer ratios as 5:3 and 7:5 (and 9:7) with an uncanny accurancy, resulting from the number-theoretic fluke that certain 13th powers of both 5 and 7 are very close to integer powers of 3. To wit: 513 = 3.007719, and 713 = 3.003723. Since the integers appearing in the exponents (13, 19, 23) are also coprime (in fact, all three are prime), it is easy to construct complete musical scales exclusively from the small-integer ratios 5:3 and 7:5. The basic chords of the new scale, 3:5:7 and 5:7:9, are superbly approximated by the equal tempered scale 3k/13 and were found by M.V. Mathews, A. Reeves, and L. Roberts to provide a strong harmonic foundation for music for music written in the new scale."

(Number Theory in Science and Communications, M.R. Schroeder)

Tuesday, September 19, 2006

Música para Cordas, Percussão e Celesta de Béla Bartók

A música para cordas, percussão e celesta de Béla Bartók, Sz. 106, BB 114, é umas das composições mais conhecidas desse compositor Húngaro. Foi comussionada por Paul Sacher para a celebração do décimo aniversário da Orquestra de Câmara de Basel, sendo datada de 7 de Setembro de 1936. A primeira performance pública da música foi em 21 de Janeiro de 1937, pela Orquestra de Câmara de Basel conduzida por Sacher. Foi publicada no mesmo ano pela Universal Edition.

Bartók utilizou a proporção áurea1 para organizar suas composições em vários níveis, tais como proporção entre durações de movimentos de uma obra, de seções de um mesmo movimento, formas de compasso, relações entre notas dentro de uma melodia e até proporções entre alturas.

Em uma peça para clarineta, piano e violino (Contrastes), o movimento lento era uma melodia folclórica húngara, mas em compasso de 13/8 (13 colcheias). O compasso é formado de duas metades, uma de 5 e outra de 8 colcheias. A de 8 é dividida em 2 grupos, um de 3 outro de 5 e a de 5 em dois grupos, de 2 e de 3. Em geral, todas as peças dele contem estas proporções, mesmo que o ouvinte não perceba (o mesmo problema levantado por Leonardo Da Vinci).



1. É fácil mostrar que a razão entre os termos da seqüência de Fibonacci tente para a razão áurea.

Sunday, September 17, 2006

uma armadura vazia

Ainda era confuso o estado das coisas do mundo, no tempo remoto em que esta história se passa. Não era raro defrontar-se com nomes, pensamentos, formas e instituições a que não correspondia nada de existente. E, por outro lado, o mundo pululava de objetos e faculdades e pessoas que não possuíam nome nem distinção do restante. Era uma época em que a vontade e a obstinação de existir, de deixar marcas, de provocar atrito com tudo aquilo que existe, não era inteiramente usada, dado que muitos não faziam nada com isso - por miséria ou ignorância ou porque tudo dava certo para eles do mesmo jeito - e assim uma certa quantidade andava perdida no vazio. Podia até acontecer então que num ponto essa vontade e consciência de si, tão diluída, se condensasse, formasse um coágulo, como a imperceptível partícula de água se condensa em flocos de nuvem, e esse emaranhado, por acaso ou por instinto, tropeçasse num nome ou numa estirpe, como então havia muitos disponíveis, numa certa patente da organização militar, num conjunto de tarefas a serem executadas e de regras estabelecidas; e - sobretudo - numa armadura vazia, pois sem ela, com os tempos que corriam, até um homem que existia corria o risco de desaparecer, imaginem um que não existia... Assim havia começado a atuar Agilulfo dos Guildiverni e a esforçar-se para obter glórias.

(O Cavaleiro Inexistente, Italo Calvino)

Saturday, September 16, 2006

exercício de precisão

Localizou-o debaixo de um pinheiro, sentado no chão, arrumando as pequenas pinhas caídas segundo um desenho regular, um triângulo isósceles. Na hora do alvorecer, Agilulfo precisava sempre dedicar-se a um exercício de precisão: contar objetos, ordená-los em figuras geométricas, resolver problemas de aritmética. É a hora em que as coisas perdem a consistência de sombra que as acompanhou durante a noite e readquirem pouco a pouco as cores, mas nesse meio tempo atravessam uma espécie de limbo incerto, somente tocado e quase envolto em halo pela luz: a hora em que se tem menos certeza da existência do mundo. Ele, Agilulfo, sempre necessitara sentir-se perante as coisas como uma parede maciça à qual contrapor a tensão de sua vontade, e só assim conseguia manter uma consciência segura de si. Porém, se o mundo ao redor se desfazia na incerteza, na ambiguidade, até ele sentia que se afogava naquela penumbra macia, não conseguia mais fazer florescer do vazio um pensamento distinto, um assomo de decisão, uma obstinação. Ficava mal: eram aqueles os momentos em que se sentia pior; por vezes, só às custas de um esforço extremo conseguia não dissolver-se. Aí, punha-se a contar: folhas, pedras, lanças, pinhas, o que lhe surgisse pela frente. Ou então colocava tudo em fila, arrumando em quadrados ou em pirâmides. Dedicar-se a estas ocupações exatas permitia-lhe vencer o mal-estar, absorver o desprazer, a inquietude e o marasmo, e retomar a lucidez e compostura habituais.
(O Cavaleiro Inexistente, Italo Calvino)

Sunday, September 10, 2006

Unheimlich

"Also heimlich ist ein Wort, das seine Bedeutung nach einer Ambivalenz hin entwickelt, bis es endlich mit seinem Gegensatz unheimlich zusammenfällt." (Schelling)

"Nennt man Alles, was im Geheimnis, im Verborgnen... bleiben sollte und hervorgetreten ist." (Schelling)

Beethoven e o Código Morse

A quinta sinfonia de Beethoven começa com a letra V no código morse.

Início da quinta sinfonia:


"V" em código Morse:


Será que tudo não passa de mera coincidência... ou será que "não existem coincidências, apenas a ilusão de coincidência"?

Beethoven escreveu a quinta entre 1804 e 1808, e morreu em 1827. O código morse foi criado por Samuel Morse em meados de 1830 e só passou a ser largamente utilizado no final da década de 1890.

É provável que Morse tenha se inspirado em Beethoven!

Mais uma curiosidade: durante a segunda guerra mundial, as transmissões de rádio da BBC se iniciavam com as quatro notas de entrada da quinta de Beethoven, denotando "V" de "vitória".

Sunday, August 27, 2006

Histeria

O termo "histeria" foi cunhado por Hipocrates, sendo proveniente do termo grego "hysterikos", que significa útero. Histeria referia-se a condição peculiar em que mulheres se encontravam quando líquidos provenientes do útero alcançavam o cérebro, devido a movimentos irregulares do sangue, causando um certo tipo de inquietação.

No século XIX a histeria era associada a uma insatisfação sexual, portanto o tratamento designado consistia em levar a mulher ao orgasmo. Diferentes aparelhos e práticas existiam para tanto, e culminaram com a criação do popularmente conhecido "consolo".

Remember the 5th of November

Remember, remember, the 5th of November
The Gunpowder Treason and plot ;
I know of no reason why Gunpowder Treason
Should ever be forgot.

Guy Fawkes, Guy Fawkes,
'Twas his intent.
To blow up the King and the Parliament.
Three score barrels of powder below.
Poor old England to overthrow.
By God's providence he was catch'd,
With a dark lantern and burning match

Holloa boys, Holloa boys, let the bells ring
Holloa boys, Holloa boys, God save the King!

Hip hip Hoorah !
Hip hip Hoorah !

A penny loaf to feed ol'Pope,
A farthing cheese to choke him.
A pint of beer to rinse it down,
A faggot of sticks to burn him.
Burn him in a tub of tar,'
Burn him like a blazing star.
Burn his body from his head,
Then we'll say: ol'Pope is dead.


"Remember Remember" refere-se a Guy Fawkes, quem no dia 5 de Novembro de 1605 foi pego tentando explodir o Parlamento inglês. Guy Fawkes foi julgado como traidor e condenado à execusão, sendo enforcado e esquartejado, para mostrar à população a gravidade do crime de traição. A partir do ano seguinte tornou-se tradição o rei ou o parlamento proferir um sermão para comemorar o evento. Essa prática, assim como a rima, seriam para que o crime jamais fosse esquecido. "Remember , remember the 5th of November". Serve como um aviso às novas gerações de que a traição jamais será perdoada.

(*) o termo "guy" do inglês teve sua origem como uma referência a Guy Fawkes. Inicialmente tinha uma conotação negativa que foi perdendo ao longo do tempo...

Wednesday, August 23, 2006

Sonhos

(...) Na Antigüidade clássica dava-se grande importância aos sonhos, como forma de prever o futuro; mas a ciência moderna nada quis com eles, passando-os à superstição, declarando-os processos puramente 'somáticos' - uma espécie de crispação de uma mente que de outra forma está adormecida. Afigurava-se inteiramente inconcebível que qualquer um que houvesse realizado um trabalho científico sério pudesse aparecer como um 'intérprete de sonhos'. Mas desprezando a excomunhão lançada contra os sonhos, tratando-os como sintomas neuróticos inexplicados, como idéias delirantes ou obsessivas, descurando de seu conteúdo aparente, e fazendo de suas imagens componentes isoladas temas para associação livre, a psicanálise chegou a uma conclusão diferente. As numerosas associações produzidas por aquele que sonhava levavam à descoberta de uma estrutura de pensamentos que não pode mais ser descrita como absurda ou confusa, que se classificava como um produto psíquico inteiramente válido, e do qual o sonho manifesto não passava de uma tradução distorcida, abreviada e mal compreendida, e na sua maior parte uma tradução em imagens visuais. Esses pensamentos oníricos latentes encerravam o significado do sonho, enquanto seu conteúdo manifesto era simplesmente um simulacro, uma fachada, que poderia servir como ponto de partida para as associações, mas não para a interpretação.
(Um estudo autobiográfico, Sigmund Freud)

Wednesday, August 02, 2006

poemas prosaicos

Por quê não homenagear também os poetas da atualidade? Poetas que não fogem ao impulso inerente de escapar do prosaico, mas dirigem-se em direção a ele, não como subterfúgio, mas o tornando cerne e sumo de sua retórica. Em meus devaneios deparei-me com duas poesias assaz interessantes, de dois poetas, adversos e acredito, ignotos. Transcrevo-os abaixo:

CRIME AO NADA
(Junia Mortimer)

Morri ontem, e só hoje vi que não deixei
centavo de honra
real de sonho
milhar de prosperidade

Morri ontem, e só hoje olhei o áspero do tronco daquela amendoeira
Só hoje saboreei o cheiro do gosto da canela azeda
Só hoje, não ontem, senti o laranja do vento de a vida continuar em punho nas tardes de maio, nos crespúsculos de junho

Casei-me anteontem, sem dotes
Morri ontem, sem herança
Acordei hoje, sem paraíso

Para quem se interessar, que aos meus, duvido, possa,
tudo que fiz, no nada de sempre querer fazer,
está na segunda gaveta da minha escrivaninha, trancada com chaves que eu esqueci onde as coloquei.

Uma pena...
ah, esses dias de porre!





LUA DE LEÃO
(Sandra Duarte Penna)

ele me que moldável tratável mensurável
frágil? eu sou ágil e posso ressurgir das cinzas.
ele me quer adestrável dirigível decifrável disponível?
me indisponho e disponho de mim a meu
modo. ele me quer redutível subordinável
acessível? jogo minhas pernas em grand-jeté
à distância, lonjura sem juras, sutil
injúria. entre lagarta e borboleta
me defendo.

Tuesday, August 01, 2006

proposições não subsumíveis

(...) aglomeados de proposições não subsumíveis a nenhuma série. (1)

(1) A famosa classificação de Borges que inspira Foucault subsume todos os itens de sua enumeração à categoria "animais", destruindo a priori na semiose toda a incompatibilidade classificatória que apresenta desde a perspectiva mimética. Neste sentindo, é útil distinguí-la da série proposta por Eustenes, que se subsume sob a letra A.

(Myriam Ávila, Fora da sentença: Hölderlin, Carroll e Lear)

Thursday, July 27, 2006

A dama no espelho

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheque ou cartas que confessem algum crime horroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelho que havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Da profundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelho italiano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também uma nesga do jardim além. Podia-se ver uma longa trilha de grama que se estendia entre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.

(...)

Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e a trilha do jardim com tanta fixidez e exatidão, que tais coisas pareciam mesmo estar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho - aqui tudo mudado e lá, tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro. Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, havia um perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transientes, ao que parecia, e dos que se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelho as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.

(A dama no espelho: reflexo e reflexão, Virginia Woolf)

Friday, July 21, 2006

Uma simples melodia

Tentou analisar esse tema, um de seus favoritos - a andada, a caminhada de diferentes pessoas até Norwich. Logo pensou na cotovia, no céu, nos panoramas. Os pensamentos e emoções de um caminhante são constituídos em grande parte por essas influências externas. Pensamentos de quem vai a pé vêm meio do céu; se pudessem ser submetidos à análise química, verificar-se-ia que eles contêm grãos de cor, que estão ligados a galões ou quartos ou quartilhos de ar. Era isso que logo os fazia mais rarefeitos, mais impessoais. Ali naquela sala porém os pensamentos se apertavam grudados, debatendo-se como peixes na rede, raspando escamas uns dos outros, transformando-se no esforço de escapar - pois toda a atividade mental era um esforço para fazer o pensamento escapar da mente do pensador transpondo ao máximo possível todos os obstáculos: toda sociedade é uma tentativa de apreender e influenciar e coagir cada pensamento, tão logo surge, e forçá-lo a ceder a um outro.

(Uma simples melodia, Virginia Woolf)

Tuesday, July 18, 2006

Life and Memory

You have to begin to lose your memory, if only bits and pieces, to realise that memory is what makes our lives. Life without memory is what makes our lives. Life without memory is no life at all... Our memory is our coherence, our reason, our feeling, even our action. Without it, we are nothing... (I can only wait for the final amnesia, the one that can erase an entire life, as it did my mother's...)

(Luis Buñuel)

Monday, July 17, 2006

Felicidade

O que soava em curiosa harmonia com o que ele tinha pensado e com a impressão de suave deslizamento de vida seguido de reajuste ordeiro, a impressão de pétala caindo e de uma rosa completa. Mas seria isso "felicidade"? Não. A palavra tão grande não parecia encaixar-se, não parecia referir-se àquele estado de ser que espiralava em lâminas rosadas em torno de uma luz refulgente. Fosse como fosse, disse mrs. Sutton, de todos os seus amigos ele era o que ela mais invejava. Ele parecia ter tudo; ela, nada. Ambos contaram - cada qual tinha dinheiro bastante; ela, um marido e filhos; ele, sua solteirice; ela estava com trinta e cinco anos; ele, com quarenta e cinco; ela nunca adoecera na vida e ele, como disse, era efetivamente mártir de alguma complicação interna - sonhava o dia todo em comer lagosta, mas não podia nem tocar em lagosta. Ora essa!, ela exclamou, como se enfiasse os dedos nalguma. Para ele, até sua própria doença era motivo de riso. Seria isso contrabalançar as coisas, ela perguntou? Seria senso de proporção, seria? Seria o quê, perguntou ele, sabendo muito bem o que ela queria dizer, mas acautelando-se diante dessa mulher insensata e destrutiva com seus modos estouvados, seu vigor e seus dissabores, que gostava de um rolo e travava escaramuças, que era capaz de abater e desfazer essa própria fruição tão valiosa, essa percepção do existir - duas imagens lhe vieram de relance e simultaneamente à cabeça - uma bandeira ao vento, uma truta num rio - equilibradas, balançadas, num fluxo de sensação límpida fresca clara luminosa lúcida tilintante invasiva que como o ar ou o rio o mantinha de tal modo aprumado que, caso ele movesse a mão, caso se dobrasse ou dissesse qualquer coisa, desalojaria a pressão dos inumeráveis átomos de felicidade que se uniam para suspendê-lo de novo.

(Felicidade, Virginia Woolf)

Sunday, July 16, 2006

Injured brother

It was Ana, Pedro. It was Ana. It was Ana, my hunger. Ana my infirmity. It was Ana my madness. It was her my breath. It was her my blade. She was my chill, my blow, my siege. It was me, injured brother. It was me, exasperated brother. It was me, brother with virulent smell. It was me, who had on the skin the spittle of many snails, the Devil's spoiled drivel. Bring me it at once, Pedro. Bring me at once the basin where we took bath as children, the tepid water, the gray soap, the rough bush, the white and fluffy towel. Wrap me up in it. Wrap me up in your arms. Dry my overturned hair. Let flow off tenderness, your soft hand on my nape. It's up to you, Pedro. To you. Who opened first the mother. To you pledged by holiness of being the first-born brother. It was Ana. It was Ana.

(...)

I saw my brother covering his face with his hands. It was sure he groped searching for a staff. He searched, certainly, for solid and hard soil. I could even hear his groan screaming for help. But looking at his posture deeply sudden and quiet, it was my father. It also happened to me that it could be a patience exercise in which he hid himself, consulting in the darkness the elders' texts, the noble and ancestral page. But in the flow of my intrigue it didn't count his pain mixed-up with the respect for letter of ancient. I had to scream in furor that my madness was wiser then the knowledge of the father. That my infirmity was in more conformity than the health of the family. My medicine were never written in any compendium. But there was another medicine, mine. And outside me I could not acknowledge any science. It was all a matter of perspective. And mine and only my way of seeing was valuable. It was a refinement of satiated, to test the virtue of patience with the hunger of third parts. And to say all this in a verbal access, turning the sermon's table on a eloquence, destroying fetters, latches and hawsers, rising a new balance and laying forces, rising always in highness. Stretching over all my clandestine muscles, rediscovering, with no delay, inside me the animal, scalp, jaw, and spurs, leaving the oiled tallow cover my sculpture while rode making my horsehair fly like feather, kneading with mine sagittarian paw the soft womb of this world, consuming in this pasture a grain of wheat and a fat slice of rage soaked in wine. I, the epileptic, the possessed, the taken. I, the starving, rolling in my confused speech the soul and the flame, a Veronica's cloth and a sneeze duded to such mud. Mixing in this soup of this flux the salty name of my sister, the perverted name of Ana. What dread. Other Suns. What anguish.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)
translated by LEo

Saturday, July 15, 2006

beyond ideas

The Brain - is wider than the Sky -
For - put them side by side -
The one the other will contain
With ease - and You - beside-



Out beyond ideas of right-doing and wrong-doing there is a field. I'll meet you there. -- Mevlana Rumi --

Wednesday, July 12, 2006

The Art of Conversation

"The real art of conversation is not only to say the right thing at the right place but to leave unsaid the wrong thing at the tempting moment."
-- Dorothy Nevill --

Tuesday, July 11, 2006

Contágio

A desgraça começa é a meia-idade. Pessoas como Jack nunca saberão disso, pensou ela; porque nem uma vez ele pensou na morte, nunca ele soube, pelo que disseram, que estava morrendo. E agora nunca pode lamentar - como era mesmo? - uma cabeça que encanece... pelo lento contágio das manchas do mundo... uma ou duas vezes antes já beberam seu trago. ... Pelo lento contágio das manchas do mundo! Ela se mantinha aprumada.

(Mrs. Dolloway em Bond Street, Virginia Woolf)


Do contágio da mancha lenta do mundo
Ele está a salvo, e não mais pode lamentar agora
Um coração que esfria, uma cabeça que embranquece em vão.

(Adonais, P.B. Shelley)



He has outsoared the shadow of our night;
Envy and calumny and hate and pain,
And that unrest which men miscall delight,
Can touch him not and torture not again;
From the contagion of the world's slow stain
He is secure, and now can never mourn
A heart grown cold, a head grown grey in vain;
Nor, when the spirit's self has ceased to burn,
With sparkless ashes load an unlamented urn.

(Adonais, Percy Bysshe Shelley)

Sunday, July 09, 2006

alexandrino

O nome alexandrino dado ao metro de doze sílabas deriva do Roman d'Alexandre le Grande, canção francesa em forma de gesta, começado no século XII por Lambert Licors e terminado no século seguinte por Alexandre de Bernay. Gestas eram poemas que celebravam grandes feitos.

flores


"Até nas flores se encontra
A diferença da sorte:
Umas enfeitam a vida,
Outras enfeitam a morte."

Friday, July 07, 2006

Delicadeza

Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível.
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher,
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratrícida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

(Elegia ao primeiro amigo, Vinícius de Morais)

Thursday, July 06, 2006

persona



Persona, palavra de origem Latina que significa literalmente "máscara". As personas eram utilizadas no teatro grego para que os atores incorporassem diferentes personalidades. As personas mudam, mas o ator, o Eu por de trás da máscara, continua presente comandando essas mudanças. Uma persona é como um segundo Eu, criado para proteger o verdadeiro Eu. Vendemos a nossa imagem pela maneira como nos apresentamos ao mundo. Nossa forma de defesa contra as crueldades do mundo é a persona, a máscara que esconde o nosso Eu interno e pretege-nos de sermos machucados. A persona externa é um elemento potencialmente mal e perigoso, ao invés de uma bonita e passiva cara por de trás da máscara.

Sunday, July 02, 2006

Un Coup de Dés



O Poeta foge de Paris e se recolhe à solidão da casinha de Valvins. Foi lá que concluíu, em 97, Un coup de dés, tão estranho, a todos os aspectos que o próprio Mallarmé, lendo-o para um amigo, perguntou-lhe depois: -- Est-ce que cela ne nous paraît tout à fait insensé? N'est-ce pas un acte de démence?

É de fato um ato de demência, mas o amigo poderia responder-lhe com as palavras de Novalis: "O poeta é verdadeiramente insensato, e é por isso que tudo acontece realmente nele. O poeta representa, no sentido próprio da palavra, o sujeito-objeto: a alma deste mundo".

"Mallarmé", conta Mauclair, "não nos ensinava. Mas fazia melhor que isso: pelo encanto de suas palavras e de sua pessoa punha cada um de nós em estado de poesia". Foi essa mocidade que, em 97, elevou Mallarmé ao posto de Príncipe dos Poetas, vago com a morte de Verlaine.

Nada porém, desarmava a incompreensão. É verdade que o poeta, por seu lado, nada fazia para desarmá-la. Ao contrário, cada vez se envolvia em névoas mais densas, ironicamente satisfeito de afastar de sua obra os espíritos superficiais, encantados de ver num escrito que nada lhes concerne à primeira vista. Diante da agressão de ininteligibilidade, preferia retorquir que a maioria dos contemporâneos não sabem ler senão jornais.

Às obscuridades naturais resultantes de seu conceito de poesia, juntou as de uma sintaxe própria, substancial e concentrada como uma fórmula algébrica. O que ele escrevia não parece produto do pensamento, mas o próprio pensamento em sua origem e evolução dialética, fecundo em incidentes atentos em se organizar num sistema indeformável à balancement prévu d'inversions.

(O Centenário de Sthéphane Mallarmé, Manuel Bandeira, conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras)

Un Coup de Dés (Mallarmé)

Friday, June 30, 2006

Ignoramus et ignorabimus

Ignoramus et ignorabimus (lat. "Wir wissen es nicht und wir werden es niemals wissen") ist ein Ausspruch des Physiologen Emil Heinrich du Bois-Reymond, der bekannt geworden ist als ein Ausdruck der Skepsis gegenüber den Erklärungsansprüchen der Naturwissenschaften.


Welche denkbare Verbindung besteht zwischen bestimmten Bewegungen bestimmter Atome in meinem Gehirn einerseits, andererseits den für mich ursprünglichen, nicht weiter definierbaren, nicht wegzuleugnenden Tatsachen 'Ich fühle Schmerz, fühle Lust; ich schmecke Süßes, rieche Rosenduft, höre Orgelton, sehe Roth ...' (Lit.: du Bois-Reymond, 1872)


Qual a imaginável ligação, por um lado, entre certos movimentos de determinados átomos em meu encéfalo, e por outro lado, para mim original, não mais definível, os fatos repudiados 'Eu sinto dor, sinto prazer; Eu sinto o doce, o perfume de rosas, escuto órgão, vejo o vermelho...'
Lit.: du Bois-Reymond, 1872, tradução: LEo)

Wednesday, June 28, 2006

errant knight

I thought of myself as a species of knight errant attacking dragons single-handedly and rescuing musical virtue in distress.
--Virgil Thomson--

Friday, June 23, 2006

Thesis

dog's life

Did you ever walk into a room and forget why you walked in? I think that is how dogs spend their lives.
--Sue Murphy--

Thursday, June 22, 2006

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicídio,
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
A vida presente.

(Carlos Drummond de Andrade)

Samba da Bênção

"Sofrer é como amar uma mulher só linda. E daí? Uma mulher tem que ter algo além da beleza. Qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudades. Um molejo de amor machucado e uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher, feita apenas para amar e pra sofrer pelo seu amor. E para ser só perdão.

Feito essa gente que anda por ai brincando com a vida. Cuidado, companheiro, a vida é pra valer e não se engane: tem uma só. Mais de uma vida, que é bom, ninguém vai me dizer que tem, sem provar. E muito bem provado. Com certidão passada em cartório do céu e assinado em baixo: Deus. E com firma reconhecida!

A vida, amigo é a arte do encontro. Embora haja tanto desencontro nessa vida. Assim como uma mulher a sua espera com os olhos cheios de carinho e as mãos cheias de perdão. Ponha um pouco de amor na sua vida."

(Vinícius de Morais)

Thursday, June 08, 2006

Um romance não escrito

Uma tal expressão de infelicidade era bastante em si mesma para fazer o olhar deslizar pela beira do papel até o rosto da pobre mulher - insignificante sem aquela expressão, quase um símbolo do destino humano com ela. A vida é o que você vê nos olhos dos outros; a vida é o que as pessoas aprendem e, tendo aprendido, nunca, embora o tentem esconder, deixam de estar conscientes - do quê? De que a vida é assim, ao que parece. Cinco rostos opostos - cinco rostos maduros - e o conhecimento em cada um. Por enquanto que seja, como as pessoas querem disfarçar isso! Em todos esses rostos há sinais de reticências: boca fechada, olhos sombrios, cada um dos cinco fazendo alguma coisa para ocultar ou estultificar seu conhecimento. Um fuma; outro lê; um terceiro confere anotações numa agenda; um quarto estuda o mapa da linha pendurado defronte; e o quinto - o que há de terrível em relação ao quinto é que ela não faz absolutamente nada. Fica vendo a vida. Ah, minha pobre, infeliz mulher, não deixe de entrar no jogo - e, em atenção a todos nós, disfarce bem!

(Um romance não escrito, Virginia Woolf)

Computer kills me

Monday, June 05, 2006

Die erste Elegie

Ó beleza! Onde está tua verdade?
Beleza que grita em minha alma
E me cala embora com a boca cheia de furor!
Avassaladora, enaltecida beleza,
Formosura que a todos chama e provoca temor.
Beleza, loucura pétrea a que me resigno.
Ó beleza! Princípio do espanto!



Die erste Elegie
(Rainer Maria Rilke)

"Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel
Ordnungen? und gesetzt selbst, es nähme
einer mich plötzlich ans Herz: ich verginge von seinem
stärkeren Dasein. Denn das Schöne ist nichts
als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen,
und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht,
uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich.
Und so verhalt ich mich denn und verschlucke den Lockruf
dunkelen Schluchzens. Ach, wen vermögen
wir denn zu brauchen? Engel nicht, Menschen nicht,
und die findigen Tiere merken es schon,
daß wir nicht sehr verläßlich zu Haus sind
in der gedeuteten Welt. Es bleibt uns vielleicht
irgendein Baum an dem Abhang, daß wir ihn täglich
wiedersähen; es bleibt uns die Straße von gestern
und das verzogene Treusein einer Gewohnheit,
der es bei uns gefiel, und so blieb sie und ging nicht".


A primeira Elegia
(Rainer Maria Rilke)

"Se gritasse, quem das legiões de anjos escutaria
o grito? E mesmo se, inesperadamente,
um deles me acolhesse no coração: sucumbiria à sua
existência mais forte! Pois o belo não é senão
o princípio do espanto que mal conseguimos suportar,
e ainda assim, o admiramos porque, sereno,
deixa de nos destruir. Todo anjo é espantoso.
E por isso me contenho e refreio o apelo
de um soluço obscuro. Então quem
nos poderia valer? Anjos, não, homens, não,
e os animais inventivos logo se apercebem
de que não nos sentimos muito em casa
no mundo das explicações. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta, para vermos e revermos
todos os dias. Resta-nos a estrada de ontem
e o apelo mimado de um hábito
que por nós se afeiçoou, permaneceu e não foi embora".

Sunday, June 04, 2006

After Hours

CD Cover

After Hours
(Velvet Underground)

one, two, three...
If you close the door
the night could last for ever
leave the sunshine out and say 'hello' to never
all the peolple are dancing and they're having such fun
I wish it could happen to me
but if you close the door
I'll never have to see the day again
if you close the door
the night could last for ever
leave the wineglass out
and drink a toast to never
Oh! someday I know someone will look into my eyes
and say 'hello'
you are my very special one
but if you close the door
I'll never have to see the day again
Dark cloudy bars
Shiny Cadillac cars
and the people are in subways and trains
looking grey under rain as they stand disarrayed
all the people look over in the dark
and if you close the door
the night could last for ever
leave the sunshine out and say 'hello' to never
all the peolple are dancing and they're having such fun
I wish it could happen to me
'cause if you close the door
I'll never have to see the day again
I'll never have to see the day again
(once more)
I'll never have to see the day again

Friday, June 02, 2006

Paulicéia Desvairada

Quando sinto a impulsão lírica, escrevo, sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. Arte que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame no caminho: deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos. Que Arte porém não seja limpar versos de exageros coloridos.

(Prefácil de Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade)

Wednesday, May 31, 2006

Fate

Many things happen between the cup and the lip.
-- Robert Burton --

Monday, May 29, 2006

Dois Animais Metafísicos

Dois Animais Metafísicos - Jorge Luis Borges

O problema da origem das idéias acrescenta duas curiosas criaturas à zoologia fantástica. Uma foi imaginada em meados do século XVIII; a outra, um século depois.

A primeira é a "estátua sensível" de Condillac. Descartes professou a doutrina das idéias inatas; Etienne Bonmot de Condillac, para refutá-lo, imaginou uma estátua de mármore, organizada e proporcionada como o corpo de um homem e habitada por uma alma que nunca houvesse percebido ou pensado. Condillac começa por conferir um único sentido à estátua: o olfativo, talvez o menos complexo de todos. Um cheiro de jasmim é o princípio da biografia da estátua; por um instante não haverá senão esse aroma no universo, que, um instante depois, será cheiro de rosa e, depois, de cravo. Se houver na consciência da estátua um único perfume, já teremos a atenção; se perdurar um perfume quando houver cessado o estímulo, teremos a memória; se uma impressão atual e uma do passado ocuparem a atenção da estátua, teremos a comparação; se a estátua perceber analogias e diferenças, teremos o juízo; se a comparação e o juízo voltarem a ocorrer, teremos a reflexão; se uma lembrança agradável for mais vívida que uma impressão desagradável, teremos a imaginação. Engendradas as faculdades do entendimento, as da vontade surgirão depois: amor e ódio (atração e aversão), esperança e medo. A consciência de ter atravessado muitos estados dará à estátua a noção abstrata de número; a de ser perfume de cravo e ter sido perfume de jasmim, a noção do eu.

O autor conferirá depois a seu homem hipotético a audição, a gustação, a visão e por fim o tato. Este último sentido lhe revelará que existe o espaço e que, no espaço, ele existe em um corpo; os sons, os cheiros e as cores tinham-lhe parecido, antes dessa etapa, simples variações ou modificações de sua consciência.

A alegoria que acabamos de relatar se intitula 'Traité des Sensations' e data de 1754; para esta notícia utilizamos o segundo volume de 'Histoire de la Philosophie', de Bréhier.

A outra criatura suscitada pelo problema do conhecimento é o "animal hipotético" de Lotze. Mais solitário que a estátua que cheira rosas e que, por fim, é um homem, esse animal não tem pele senão um ponto sensível e móvel, na extremidade de uma antena. Sua conformação lhe proíbe, como se vê, as percepções simultâneas. Lotze pensa que a capacidade de retrair ou projetar sua antena sensível bastará para que o quase incomunicável animal descubra o mundo exterior (sem o auxílio das categorias kantianas) e distinga um objeto estacionário de um objeto móvel. Esta ficção foi elogiada por Vaihinger; está registrada na obra 'Medizinische Psychologie', que é de 1852.

(Dois Animais Metafísicos, O Livro dos Seres Imaginários, Jorge Luis Borges)

Friday, May 26, 2006

Retrato / Espelho

Retrato
(Cecilia Meireles)

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Mais uma vez nos deparamos com a metáfora do espelho... "espelho, que fielmente duplica as aparências", segundo Borges. Simbolicamente, os espelhos comportam uma ambiguidade: ao mesmo tempo podem ser vistos como instrumento de devolução do Eu e também como instrumento de rapto da alma. O que seria então a face que ficou perdida no espelho? Aquela face por outrora alegre e vivida? Aquela face que o tempo erodiu? Tempo, esse agente avassalador que a nada perdoa... Tempo e espelho, metáforas de um tempo longínquo, ou de uma realidade que nunca foi? Existem universos em que tempo e espelho se confundem, enquanto o Eu vaga cataléptico pelo limbo. Eis o paradoxo da busca pela existência. Existência essa que não passa de um mero encontro fortuito. Um encontro entre as duas imagens refletidas no espelho. Como saber qual delas é real? Fato é que isto simplesmente não importa... pois não são duas, mas una.

Wednesday, May 17, 2006

Ilusões da Vida

Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.

(Francisco Otaviano)

Monday, May 15, 2006

Irmão acometido

Era Ana, Pedro. Era Ana. Era Ana, minha fome. Ana minha enfermidade. Era Ana minha loucura. Ela o meu respiro. Era Ana minha lamina. Ela meu arrepio, meu sopro, meu assédio. Era eu, irmão acometido. Era eu, irmão exasperado. Era eu, irmão de cheiro virulento. Era eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do Demo. Me traga logo, Pedro. Me traga logo a bacia de nossos banhos de meninos, a água morna, o sabão de cinza, a bucha crespa, a toalha branca e felpuda. Me enrole nela. Me enrole nos teus braços. Enxugue meus cabelos transtornados. Escorra depois ternura, tua mão grave na minha nuca. É isso que compete a você, Pedro. A você, que abriu primeiro a mãe. A você, que foi brindado com a santidade de irmão primogênito. Era Ana. Era Ana.

(...)

Vi que meu irmão cobriu o rosto com as mãos. Estava claro que ele tatiava a procura de um bordão. Buscava com certeza terra sólida e dura. Eu podia até escutar os seus gemidos gritando por socorro. Mas vendo-lhe a postura profundamente súbita e quieta, era o meu pai. Me ocorreu também que era talvez um exercício de paciência em que ele se recolhia, consultando no escuro o texto dos mais velhos, a página nobre e ancestral. Mas na corrente do meu trame já não contava a sua dor misturada ao respeito pela letra dos antigos. Eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai. Que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família. Que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios. Mas que existia uma outra medicina, a minha. E que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência. E que era tudo só uma questão de perspectiva. E o que valia era o meu e só o meu ponto de vista. E que era um requinte de saciados, testar a virtude da paciência com a fome de terceiros. E dizer tudo isso num acesso verbal, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, erguendo um outro equilíbrio e pondo força, subindo sempre em altura. Retesando sobretudo os meus músculos clandestinos, redescobrindo, sem demora, em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que o cebo oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho. Eu, o epiléptico, o possuído, o tomado. Eu, o faminto, rolando na minha fala conrussa a alma de uma chama, um pano de Verônica e um espirro de tanta lama. Misturando no caldo desse fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de Ana. Que temores. Outros sóis. Que estertores.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Lira dos vinte anos

Oh ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre o meu peito!

Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve com a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro;
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?

(Manuel Antônio Álvares de Azevedo)

Wednesday, May 10, 2006

Viola de Lereno

Prometeu-me Amor doçuras,
Contentou-se em prometer;
E me faz viver morrendo
Sem acabar de morrer.

Em mim tome um triste exemplo
Quem amando quer viver;
Saiba que é viver morrendo
Sem acabar de morrer.

Cuidei que o gosto de Amor
Sempre o mesmo gosto fosse;
Mas meu Amor brasileiro
Eu não sei por que é mais doce.

Eu sei, cruel, que tu gostas,
Sim, gostas de me matar;
Morro, e por dar-te mais gosto,
Vou morrendo devagar.

(Domingos Caldas Barbosa)

Tuesday, May 09, 2006

Rises the Sun

Rises the Sun, and it lasts no more than a day,
After the Light the dark night comes,
In sad shadows beauty is gone,
In continuous sadness feeling gay.

If the Sun perishes, why did it rise?
If lovely is Light, why doesn't it still shine?
How beauty can transfigure itself this kind?
How this delight for feather lives?

But in the Sun, and in the Light, lacks steadiness,
In beauty there ir no constancy,
And feels sorrow in sadness.

Starts finaly the World through ignorance,
And any of the goods has by essence
Steadiness only in inconstancy.


(Gregório de Matos)
translated by LEo

Time

Time is the greatest treasure men can make use of. Although inconsumable, time is our best nourishment. With no measure I know, Time is like everything, our good with highest value. It has no begin, and no end. Rich is not the man who collects and weights himself in amounts of coins, nor those profligate person who lays hands and arms in wide fields. Rich is only man who learned, merciful and humble, to coexist with Time, approaching it with tenderness, not rebelling against its course, toasting rather with knowledge to receive its favors, but not its wrath. The equilibrium in life is essentially in its supreme good. And who knows for chance the rate to slow down or the amount of waiting that we should impinge on things, never takes the risk, when looking for them, of confronting yourself with what is not, for only the just measure of Time gives the just nature of things.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)
translated by LEo

Sunday, May 07, 2006

O tempo

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento. Sem medida que eu conheça, o tempo é como tudo, o nosso bem de maior grandeza. Não tem começo, não tem fim. Rico não é homem que coleciona e se pesa num amontoado de moedas, nem aquele devasso que se estende mãos e braços em terras largas. Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não se rebelando contra seu curso, brindando antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira. O equilíbrio da vida está essencialmete neste bem supremo. E quem souber com acerto a quantidade de vagar ou a de espera que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Friday, May 05, 2006

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

(Gregório de Matos)

Thursday, May 04, 2006

Vestido de Noiva

(...)

Ao sair do teatro, tomei conhecimento da reação do público, que de lá saiu discutindo, discordando, discorrendo. Remexido enfim. Bom teatro, o que sacode o público. Nelson Rodrigues sacode-o, e tem força nos pulsos.

(...)

Aqui é que se revela a força a um tempo realística e poética de Nelson Rodrigues. Nunca delirei alto em minha vida, e peço a Deus que me livre disso. Mas o subdelírio me é muito familiar: qualquer febrinha declancha na minha cachola aquela mistura estapafúrdia de realidade e sonho, tão terrível, mas tão cheia de sentido poético. A criação de Nelson Rodrigues é admirável.

(...)

Sem dúvida o teatro desse estreante desnorteia bastante porque nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade física. Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação.

(Vestido de Noiva, Flauta de Papel, Manuel Bandeira)

Nudez na Praia

O Brasil revolucionário em matéria de nudismo continua intratável. O nosso nudismo estava confinado às praias de banho e aos salões de baile: a polícia interveio nas praias. Falta que intervenha nos salões, reduzindo o v dos decotes. Então seremos um povo inteiramente moralizado, ao que parece.

(De Nudez na Praia, Andorinha, Andorinha, Manuel Bandeira)

Friday, April 28, 2006

Nossa Glória

Não é verdade que a nossa melhor glória são esses resíduos que deixamos na memória dos outros?

(A Carta Devolvida Pena Filho II, Andorinha, Andorinha, Manuel Bandeira)

carta de Andrade a Bandeira

Treche da carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira.

"Não tenho a pretenção de ficar. O que eu quero é viver o meu destino. Minhas forças, meu valor, meu destino é ser transitório. Isso não me entristece nem me orgulha. E tanto é assim que cumpro o meu destino, que estraçalhando as minhas coisas certas, sinto-me feliz."

(Meu Amigo Mário de Andrade, Andorinha, Andorinha, Manuel Bandeira)

Thursday, April 27, 2006

Segredo da Felicidade

Trecho da carta de Honório Bicalho a Manuel Bandeira.

"O segredo da alegria, da felicidade consiste apenas em... não pensar, em deixar-nos ir através da vida como quem na rua olha distraidamente uma vitrina, sem procurar ver a qualidade e o valor da mercadoria exibida: o que vale dizer que a única coisa boa que existe é a imaginação, a fantasia, o sonho, e que tudo o mais quanto seja ou ao menos possa parecer realidade e verdade, não passa de desilusão e tristeza."

(Um Amigo: Rufino Fialho, Andorinha, Andorinha - Manuel Bandeira)

Friday, April 21, 2006

The Past

The Past
(Ralph Waldo Emerson)

The debt is paid,
The verdict said,
The Furies laid,
The plague is stayed,
All fortunes made;
Turn the key and bolt the door,
Sweet is death forevermore.
Nor haughty hope, nor swart chagrin,
Nor murdering hate, can enter in.
All is now secure and fast;
Not the gods can shake the Past;
Flies-to the adamantine door
Bolted down forevermore.
None can reenter there, -
No thief so politic,
No Satan with a royal trick
Steal in by window, chink or hole,
To bind or unbind, add what lacked
Insert a leaf, or forge a name,
New-face or finish what is packed,
Alter or mend eternal Fact.

A Outra Morte

Na Suma Teológica nega-se que Deus possa fazer com que o passado não tenha sido, mas nada se diz da intrincada concatenação de causas e efeitos, tão vasta e tão íntima que talvez não fosse possível anular um único fato remoto, por insignificante que fosse, sem invalidar o presente. Modificar o passado não é modificar um único fato; é anular suas conseqüências, que tendem a ser infinitas. Por outras palavras: é criar duas histórias universais. (...)

(A Outra Morte, O Aleph - Jorge Luis Borges)

Tuesday, April 18, 2006

Caprichos e Relaxos

(Caprichos & relaxos, Paulo Leminski)


Quem nasce com coração?
Coração tem que ser feito.
Já tenho uma porção
Me infernando o peito.

Com isso ninguém nasça.
Coração é coisa rara,

Coisa que a gente acha
E é melhor encher a cara.

eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro do meu centro
este poema me olha

não sou o silêncio
que quer dizer palavras
ou bater palmas
pras performances do acaso

sou um rio de palavras
peço um minuto de silêncios
pausas valsas calmas penadas
e um pouco de esquecimento

apenas um e eu posso deixar o espaço
e estrelar este teatro
que se chama tempo

Sunday, April 16, 2006

Quintal

(...) as horas que eu passava no quintal eram de treino para a poesia. Na rua, com os meninos da minha idade eu brincava ginasticamente, turbulentamente; no quintal sonhava na intimidade de mim mesmo. Aquele era o meu pequeno mundo dentro do grande mundo da vida...

(O Quintal, Andorinha, andorinha - Manuel Bandeira)

Friday, April 14, 2006

Um instante

Um instante
(Ferreira Gullar)

Aqui me tenho
Como não me
conheço
 nem me
quis
 
sem começo
nem fim
 
 aqui me
tenho
 sem mim
 
nada lembro
nem sei
 
à luz presente
sou apenas um bicho
 transparente

A Chave do Poema

Oras direis: "Mas isso não é poesia, é enigma". Eu vos direi no entanto que toda poesia é enigma. Toda palavra, antes que lhe conheçamos o significado, é um enigma formidável.

(A Chave do Poema, Flauta de Papel - Manuel Bandeira)

Thursday, April 13, 2006

poeta concretista

Já se disse que o poeta é o homem que vê o mundo com olhos de criança, que quer dizer: o homem que olha as coisas como se as visse pela primeira vez; que as percepciona em sua perene virgindade. Imagino que o poeta concretista se esforça por ver as palavras despojadas de todo o seu convencional conteúdo semântico.

(Poesia Concreta II, Flauta de Papel - Manuel Bandeira)

Thursday, April 06, 2006

Viola de Bolso



Mallarmé gostava de redigir em versos os endereços de suas cartas. E não desdenhava desses nadas encantadores, pois certa vez publicou alguns na revista norte-americana The Chap Book, e até pensou em editar uma plaquete mais desenvolvida e com ilustrações da esposa de Whistler. Todavia, só depois da morte do poeta saíram em letra de forma os Vers de circonstance, onde vêm, não só endereços, mas também versos escritos em leques, fotografias, ovos de Páscoa, livros, etc. Tudo isso feito "por puro sentimento estético" e, como desses breves poemas disse Jean Royère - igualando em complexidade e ironia "les morceaux classés". De fato: há tanto de Mallarmé no "Prélude à l'après-midi d'un faune" como nos endereços das cartas do poeta a Mme. Méri Laurent.
(...)

(Viola de Bolso, Flauta de Papel - Manuel Bandeira)

Manuelzinho

Na rua Toneleros tem um bosque, que se chama, que se chama solidão; nesse bosque, nesse bosque mora um anjo, que se chama Alexandre Manuel Tiago de Melo. É um caboclo amazonence nascido por engano em Copacabana; fez, otem, precisamente quatro anos.

Está me palpitando que dará para poeta, como o pai, e será um craque na geração de 75. Digo isso porque o meu xará já se saía com coisas estranhíssimas antes dos quatro anos. Quando foi tomar banho de mar pela primeira vez, achou a água fria demais e botou a boca no mundo. Mas o mar impressionou-o fundamente. Dias depois, deitado na praia com a tia, perguntou-lhe: "O mar fica aí de noite?" Respondeu a tia: "Fica". E Manuel: "Fazendo o quê?" A tia: "Esperando pelo Sol." Manuel: "Pra se esquentar, não é?"

(...)

Manuelzinho viu o minguante e perguntou à mãe: "Mamãe, quem foi que quebrou a lua?" Para mim, a lua de Manuelzinho vale a de Victor Hugo.

(...)

(Manuelzinho, Flauta de Papel - Manuel Bandeira)



ser poeta é ser criança,
é olhar para a natureza e ver apenas o que é singelo.
o poeta sonha e transforma a sua realidade
e viaja, como diria Galeano, sem passagem. ainda bem!
poesia é uma arte? ou uma brincadeira?
o poeta é aquele que brinca com as incertezas do universo
e faz pouco caso de acontecimentos
quando crescer não quero ser poeta,
quero ser criança.
não quero morrer nunca,
porque quero brincar sempre

Wednesday, April 05, 2006

Enigma da Esfinge

Um jovem chamado Édipo, a quem o oráculo de Delfos dissera que estava destinado a assassinar o pai e praticar incesto com a mãe, na estrada de Tebas, brigou com o Rei Laio e matou-o sem saber que era seu pai. Édipo desafiou a Esfinge, que lhe perguntou: "Que criatura anda de quatro de manhã, anda com dois pés ao meio-dia e com três à noite?" "O homem", respondeu Édipo, prontamente. "Na infância ele anda sobre as mãos e os pés, na idade adulta anda ereto e na velhice apóia-se num cajado." Mortificada pela resposta correta, a Esfinge jogou-se de um rochedo e morreu. Encantados, os tebanos nomearam Édipo seu rei e ele se casou com Jocasta, viúva do rei falecido, gerando quatro filhos. Os deuses enviaram uma praga e Édipo soube que tinha assassinado seu pai e casado com sua mãe.

The Fool on The Hill (Beatles)


Day after day alone on the hill,
The man with the foolish grin is keeping perfectly still,
But nobody wants to know him,
They can see that he’s just a fool,
And he never gives an answer,
But the fool on the hill
Sees the sun going down,
And the eyes in his head,
See the world spinning around.

Well on his way his head in a cloud,
The man of a thousand voices talking percetly loud
But nobody ever hears him,
Or the sound he appears to make,
And he never seems to notice,
But the fool on the hill . . .
Nobody seems to like him
They can tell what he wants to do.
And he never shows his feelings,
But the fool on the hill . . .

Friday, March 31, 2006

how much the heart can hold?

Nobody has ever measured, not even poets, how much the heart can hold.
-- Zelda Fitzgerald --

Thursday, March 30, 2006

Triunfo

Ah não me deixes nunca andar sozinho,
Mas dá-me sempre, em aflição tamanha,
Um pouco de consolo e de carinho.

Ó meu sonho de amor, tu me acompanha
Por esta vida, às vezes tão escura,
Por esta vida, às vezes tão estranha.

E embora a gente humana te não louve,
Hás de viver contente, conhecendo
Que Polímnia te inspira e Apolo te ouve.

Assim falou e a flama em que me acendo
Dentro do coração ia aumentando
Enquanto a doce voz ia gemendo.

E ela, que de Cupido segue o mando,
Cortou no bosque os ramos duradouros
E co'um sorriso milagroso e brando
Me coroou de mirtos e de louros.

(José de Abreu Albano)


"José de Abreu Albano foi um altíssimo poeta, escreveu um dos mais belos sonetos da língua portuguesa e de todas as línguas, viveu perfeitamente feliz dentro do seu sonho, na loucura que Deus lhe deu e na miséria que foi a criação de sua própria mão perdulária." (Manuel Bandeira, Flauta de Papel)

Wednesday, March 29, 2006

the brain imaging mania

In every lab now in the United States, in every corner, there's an fMRI being done, an EEG being done. There is this brain imaging mania. It's almost become like a voyeuristic phrenology, harking back to the 19th century, to see what lobe is doing what.

(Entrevista com Professor V.S. Ramachandran)


Monday, March 27, 2006

Humanität

Nove dias antes de sua morte, Emmanuel Kant recebeu a visita de seu médico. Velho, doente e quase cego, levantou-se da cadeira e ficou em pé, tremendo de fraqueza e murmurando palavras ininteligíveis. Finalmente, seu fiel acompanhante compreendeu que ele não se sentaria antes que sua visita o fizesse. Este assim fez e só então Kant deixou-se levar para sua cadeira e, depois de recobrar um pouco as forças, disse: "Das Gefühl für Humanität, hat mich noch nicht verlassen" - "O senso de humanidade ainda não me deixou". Os dois homens comoveram-se até às lágrimas. Pois, embora a palavra Humanität apresentasse, no século XVIII, um significado quase igual a polidez ou civilidade, tinha, para Kant, uma significação muito mais profunda, que as circunstâncias do momento serviram para enfatizar: a trágica e orgulhosa consciência no homem de princípios por ele mesmo aprovados e auto-impostos, contrastando com sua total sujeição à doença, à decadência, e a tudo o que implica o termo "mortalidade".

(Erwin Panodsky, Significado nas Artes Visuais)

Sunday, March 26, 2006

Elizabeth Barrett Browning







 
How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.
I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candle-light.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints!---I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life!---and, if God choose,
I shall but love thee better after death.


(Elizabeth Barrett Browning - #43, Sonnets from the Portuguese)

Saturday, March 25, 2006

haicai

Faltava à minha coleção algum haicai. Acabo de achar vários agora, e estupendos, onde menos esperava: num livro de fórmulas de toilette para mulheres.
Alguns exemplos:




 Água de rosas
Glicerina
Bórax
Álcool

Que brilho verbal, que surpresa para o ouvido na sonoridade seca da palavra álcool depois da musicalidade um pouco solta dos dois primeiros versos e desfazendo num como acorde suspensivo a cadência perfeita do verso bórax.

(Manuel Bandeira - Fragmentos, Crônicas da província do Brasil)

dreams

"I'm sick of following my dreams. I'm just going to ask them where they're going and hook up with them later."
-- Mitch Hedberg --

Religião Brasileira

- Como se descreve essa pintura?
- No sentido abstrato, meu caro.
Abstrato? Ah, sim! A palavra, por não explicar nada, esclarece tudo.





(Manuel Bandeira - Társila Antropófaga, Crônicas da província do Brasil)

Thursday, March 23, 2006

Niilismo

niilismo
do Lat. nihil, nada

Niilismo é a crença de que todos os valores não possuem base, e que nada pode ser sabido ou cominicado. É geralmente associado ao pessimismo extremo e um cepticismo radical que condena a existência. Concebe a existência humana como desprovida de qualquer sentido.

Essa corrente foi popularizada primeiramente na Rússia do século XIX, como reação de alguns intelectuais russos, mormente socialistas e anarquistas, à lentidão dos czares em promover as desejadas reformas democráticas.





 Aquele que luta contra monstros deve cuidar-se para não torna-se um monstro no processo. E quando olhar persistentemente para um abismo, o abismo olhará de volta para você.
(Friedrich Nietzsche)

Doubt

"Doubt is not a pleasant condition, but certainty is absurd."
-- Voltaire --

livro

O livro de que mais gostei?
Ah! professor, na minha idade gosta-se de tudo, e gosta-se de tudo com o mesmo ardor e entusiasmo.

(Manuel Bandeira, Leituras de Mocinhas - Crônicas da província do Brasil)

Wednesday, March 22, 2006

lonly dance

No matter how close to yours another's steps have grown, in the end there is one dance you'll do alone.
-- Jackson Browne --

Tuesday, March 21, 2006

Romance do Beco

O marinheiro triste debruçou-se à janela do apartamento 54, olhou a paisagem de mares e montanhas equilibrada sobre telhados sujos e afinal, como sempre, acabou descaindo a vista na calçada do beco. Mas desta vez foi diferente, porque o homem desceu apressado os cinco lances de escadas do edifício e foi escrever no paredão do convento o "Poema do beco".



 
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o beco.



(Manuel Bandeira, Crônicas da província do Brasil)

William Turner



Thursday, March 16, 2006

instinto

INSTINTO
(Raul de Leoni Ramos)

Glória ao Instinto, a lógica fatal
Das cousas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que o sonho de Platão!

Pura sabedoria natural
Que move os seres pelo coração,
Dentro da formidável ilusão,
Da fantasmagoria universal!

És a minha verdade, e a ti entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego,
A minha linda e trágica inocência!

Ó soberano intérprete de tudo,
Invencível Edipo, eterno e mudo,
De todas as esfinges da Existência!...

Wednesday, March 15, 2006

memories

Obviously the facts are never just coming at you but are incorporated by an imagination that is formed by your previous experience. Memories of the past are not memories of facts but memories of your imaginings of the facts.
-- Philip Roth --

Monday, March 13, 2006

books

Some books are to be tasted, others to be swallowed, and some few to be chewed and digested.
-- Francis Bacon, Essay--Of Studies --

Wednesday, March 08, 2006

chauvinista

do Fr. Nicolau Chauvin
s. 2 gén., pessoa de nacionalismo e patriotismo exagerados, que os defende de uma forma agressiva.

O termo derivou de Nicolas Chauvin, o nome de um soldado de Napoleão Bonaparte, devido à sua paixão fervorosa pelo seu Imperador. Nicolas Chauvin foi ferido 17 vezes nas guerras Napoleonicas e, mesmo assim, continuou a lutar pela França.

Thursday, March 02, 2006

truth

"The truth is always a compound of two half-truths, and you never reach it, because there is always something more to say."
-- Tom Stoppard --

Wednesday, February 22, 2006

abstract art

"There is no abstract art. You must always start with something. Afterward you can remove all traces of reality."
-- Pablo Picasso --

Monday, February 20, 2006

Arte

Arte, ainda que o assunto cause polêmica. O Zé Celso, um dia, disse uma frase: "Os publicitários são demônios"... Escrever um romance ou criar um anúncio são formas de poder. Fazer nascer gente e cidades, modificar ou instalar hábito e costumes... Muitas vezes, ao ler um anúncio me espanto e fico com inveja, é como estar lendo haicai, poesias concretas, textos minimalistas, axiomas, minicontos, aforismos. Mexendo com a realidade, a propaganda se assemelha à ficção. Os produtos são personagens. Há layouts que podem estar no museu, expostos em galerias, um dia vão figurar na história da arte, assim como os pôsteres de Toulouse-Lautrec.

(A Voz das Estrelas, Ignácio de Loyola Brandão)

enigma

"I have come to believe that the whole world is an enigma, a harmless enigma that is made terrible by our own mad attempt to interpret it as though it had an underlying truth."
-- Umberto Eco --

Tuesday, February 14, 2006

vatapá

Não comi, como os viajantes de escalam os vatapás e carurus da Petisqueira, pratarrazes comerciais afinal de contas. Godofredo levou-me com mistério à cozinha modesta onde a gorda preta Eva preparava, com a simplicidade do trivial mais fácil, as mais estupendas misturas de dendê e pimentas queimadas que já provei na minha vida. Era passar lá às nove da manhã e encomendar: peixada de moqueca, ou vatapá, ou caruru, ou efó, ou galinha de ó-xin-xin. Quando se voltava ao meio-dia encontrava-se um prato cheiroso e complicadíssimo que parecia exigir um mês ao menos de manipulação. E aparecendo de improviso era quase a mesma coisa.


(Bahia, Crônicas da província do Brasil - Manuel Bandeira)

arranha-céus

Há muita gente ingênua para quem progresso urbano é avenida e arranha-céu. Modernidade -- asfalto e cimento armado. Pois eu estou pronto a sustentar para essas sensibilidades modernas, que os tais arranha-céus cariocas não passam de casarões passadistas de muitos andares, ao passo que os velhos sobradões de duas águas da Bahia, com três, quatro andares e sotéias, obedecem à estética despojada, linear, sintética dos legítimos arranha-céus.

(Bahia, Crônicas da província do Brasil - Manuel Bandeira)

Monday, February 13, 2006

answers

At the beginning of my journey, I was naive. I didn't yet know that answers vanish as one continues to travel, that there is only further complexity, that there are still more interrelationships, and more questions.
-- Robert D. Kaplan --

cluttered desk

"If a cluttered desk is the sign of a cluttered mind, what is the significance of a clean desk?"
-- Laurence J. Peter --

Friday, February 10, 2006

De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes

Crônicas da província do Brasil
De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes
(Manuel Bandeira)

Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. Morta é S. João d'El-Rei. Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável encanto. Passada a época ardente da mineração (em que foi de resto arraial de aventureiros, a sua idade mais bela como fenômeno da vida), e a saldo do progresso demudador pelas condições ingratas da situação topográfica, Ouro Preto conservou-se tal qual, em virtude mesmo da sua pobreza, aquela pobreza que já por volta de 1809, segundo depoimento de Mawe, fazia, por escárnio, trocarem-lhe em Vila Pobre o nome da sua fundação em 1711, que era o de Vila Rica de Albuquerque.

Tuesday, January 31, 2006

primeiras impressões - Os Sofrimentos do Jovem Werther

(...) Hoje fui lá afinar o cravo de Lotte, mas não pude fazê-lo porque as crianças não me deixaram por um segundo sequer, pedindo que eu lhes contasse um conto de fadas, e ela mesma pediu que atendesse. Cortei-lhes o pão da merenda, que agora aceitam receber tanto de mim quanto de Lotte; depois contei a mais linda história, a de uma princesa que era servida por mãos encantadas. Aprendo muito com isso e fico admirado da impressão que tudo isso provoca neles. Se invento algum incidente e me esqueço de repeti-lo ao contar a história uma outra vez, eles me advertem de que, antes, contei de outro modo. Assim, sou forçado a manter um ritmo invariável, sem mudar coisa alguma, como se estivesse desfiando um rosário. Isso me convence de que um autor estraga a sua obra revendo-a e corrigindo-a para um segunda edição, pois ela nada ganha quanto ao conteúdo poético. A primeira impressão nos encontra em estado passivo, a tal ponto que o homem pode aceitar as coisas mais inverossímeis; e, como se fixam fortemente no espírito, ai de quem quiser depois arrancá-las ou destruí-las.

Wednesday, January 25, 2006

Os sofrimentos do jovem Werther - Goethe

Que calor percorre todo o meu ser quando por acaso meu dedo toca no dela, ou nossos pés se encontram embaixo da mesa! Afasta-os como se tivesse tocado o fogo, e uma força secreta impulsiona-me de novo... uma vertigem arrebata todos os meus sentidos!... E dizer que sua alma cândida desconhece a tortura que me infligem essas pequenas intimidades! E quando, animados pela conversa, ela pousa sua mão sobre a minha, e quando, ao conversar, ela se aproxima tanto de mim que eu chego a experimentar seu hálito celestial junto dos meus lábios... então, parece que vou cair como que fulminado por um raio...

Saturday, January 21, 2006

amar - Memórias do Subsolo - Dostoiévski

Durante toda a vida, eu não podia sequer conceber em meu íntimo outro amor, e cheguei a tal ponto que, agora, chego a pensar por vezes que o amor consiste justamente no direito que o objeto amado voluntariamente nos concede de exercer tirania sobre ele. Mesmo nos meus devaneios subterrâneos, nunca pude conceber o amor senão como uma luta: começava sempre pelo ódio e terminava pela subjugação moral; depois não podia sequer imaginar o que fazer com o objeto subjugado.

Tuesday, January 17, 2006

Dostoievski - Memórias do Subsolo - Notes from Underground

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (...) Mas apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.


I am a sick man, I am a spiteful man. I am not a pleasant man at all. I believe there is something wrong with my liver. However I don't know the first thing about my liver, neither do I know what's really wrong with me. I'm not under a doctor, never have been, though it is not as if I didn't respect medicine and doctors (. . .). As a matter of fact, I refuse medical treatment out of spite (. . .). I realise full well that I can't upset the medics by refusing to receive treatment; I realise better than anyone else that this way I'm harming myself and no one else (. . .). So my liver hurts, well all right, let it hurt, let it hurt all the more.