Wednesday, May 31, 2006

Fate

Many things happen between the cup and the lip.
-- Robert Burton --

Monday, May 29, 2006

Dois Animais Metafísicos

Dois Animais Metafísicos - Jorge Luis Borges

O problema da origem das idéias acrescenta duas curiosas criaturas à zoologia fantástica. Uma foi imaginada em meados do século XVIII; a outra, um século depois.

A primeira é a "estátua sensível" de Condillac. Descartes professou a doutrina das idéias inatas; Etienne Bonmot de Condillac, para refutá-lo, imaginou uma estátua de mármore, organizada e proporcionada como o corpo de um homem e habitada por uma alma que nunca houvesse percebido ou pensado. Condillac começa por conferir um único sentido à estátua: o olfativo, talvez o menos complexo de todos. Um cheiro de jasmim é o princípio da biografia da estátua; por um instante não haverá senão esse aroma no universo, que, um instante depois, será cheiro de rosa e, depois, de cravo. Se houver na consciência da estátua um único perfume, já teremos a atenção; se perdurar um perfume quando houver cessado o estímulo, teremos a memória; se uma impressão atual e uma do passado ocuparem a atenção da estátua, teremos a comparação; se a estátua perceber analogias e diferenças, teremos o juízo; se a comparação e o juízo voltarem a ocorrer, teremos a reflexão; se uma lembrança agradável for mais vívida que uma impressão desagradável, teremos a imaginação. Engendradas as faculdades do entendimento, as da vontade surgirão depois: amor e ódio (atração e aversão), esperança e medo. A consciência de ter atravessado muitos estados dará à estátua a noção abstrata de número; a de ser perfume de cravo e ter sido perfume de jasmim, a noção do eu.

O autor conferirá depois a seu homem hipotético a audição, a gustação, a visão e por fim o tato. Este último sentido lhe revelará que existe o espaço e que, no espaço, ele existe em um corpo; os sons, os cheiros e as cores tinham-lhe parecido, antes dessa etapa, simples variações ou modificações de sua consciência.

A alegoria que acabamos de relatar se intitula 'Traité des Sensations' e data de 1754; para esta notícia utilizamos o segundo volume de 'Histoire de la Philosophie', de Bréhier.

A outra criatura suscitada pelo problema do conhecimento é o "animal hipotético" de Lotze. Mais solitário que a estátua que cheira rosas e que, por fim, é um homem, esse animal não tem pele senão um ponto sensível e móvel, na extremidade de uma antena. Sua conformação lhe proíbe, como se vê, as percepções simultâneas. Lotze pensa que a capacidade de retrair ou projetar sua antena sensível bastará para que o quase incomunicável animal descubra o mundo exterior (sem o auxílio das categorias kantianas) e distinga um objeto estacionário de um objeto móvel. Esta ficção foi elogiada por Vaihinger; está registrada na obra 'Medizinische Psychologie', que é de 1852.

(Dois Animais Metafísicos, O Livro dos Seres Imaginários, Jorge Luis Borges)

Friday, May 26, 2006

Retrato / Espelho

Retrato
(Cecilia Meireles)

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Mais uma vez nos deparamos com a metáfora do espelho... "espelho, que fielmente duplica as aparências", segundo Borges. Simbolicamente, os espelhos comportam uma ambiguidade: ao mesmo tempo podem ser vistos como instrumento de devolução do Eu e também como instrumento de rapto da alma. O que seria então a face que ficou perdida no espelho? Aquela face por outrora alegre e vivida? Aquela face que o tempo erodiu? Tempo, esse agente avassalador que a nada perdoa... Tempo e espelho, metáforas de um tempo longínquo, ou de uma realidade que nunca foi? Existem universos em que tempo e espelho se confundem, enquanto o Eu vaga cataléptico pelo limbo. Eis o paradoxo da busca pela existência. Existência essa que não passa de um mero encontro fortuito. Um encontro entre as duas imagens refletidas no espelho. Como saber qual delas é real? Fato é que isto simplesmente não importa... pois não são duas, mas una.

Wednesday, May 17, 2006

Ilusões da Vida

Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.

(Francisco Otaviano)

Monday, May 15, 2006

Irmão acometido

Era Ana, Pedro. Era Ana. Era Ana, minha fome. Ana minha enfermidade. Era Ana minha loucura. Ela o meu respiro. Era Ana minha lamina. Ela meu arrepio, meu sopro, meu assédio. Era eu, irmão acometido. Era eu, irmão exasperado. Era eu, irmão de cheiro virulento. Era eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do Demo. Me traga logo, Pedro. Me traga logo a bacia de nossos banhos de meninos, a água morna, o sabão de cinza, a bucha crespa, a toalha branca e felpuda. Me enrole nela. Me enrole nos teus braços. Enxugue meus cabelos transtornados. Escorra depois ternura, tua mão grave na minha nuca. É isso que compete a você, Pedro. A você, que abriu primeiro a mãe. A você, que foi brindado com a santidade de irmão primogênito. Era Ana. Era Ana.

(...)

Vi que meu irmão cobriu o rosto com as mãos. Estava claro que ele tatiava a procura de um bordão. Buscava com certeza terra sólida e dura. Eu podia até escutar os seus gemidos gritando por socorro. Mas vendo-lhe a postura profundamente súbita e quieta, era o meu pai. Me ocorreu também que era talvez um exercício de paciência em que ele se recolhia, consultando no escuro o texto dos mais velhos, a página nobre e ancestral. Mas na corrente do meu trame já não contava a sua dor misturada ao respeito pela letra dos antigos. Eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai. Que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família. Que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios. Mas que existia uma outra medicina, a minha. E que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência. E que era tudo só uma questão de perspectiva. E o que valia era o meu e só o meu ponto de vista. E que era um requinte de saciados, testar a virtude da paciência com a fome de terceiros. E dizer tudo isso num acesso verbal, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, erguendo um outro equilíbrio e pondo força, subindo sempre em altura. Retesando sobretudo os meus músculos clandestinos, redescobrindo, sem demora, em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que o cebo oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho. Eu, o epiléptico, o possuído, o tomado. Eu, o faminto, rolando na minha fala conrussa a alma de uma chama, um pano de Verônica e um espirro de tanta lama. Misturando no caldo desse fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de Ana. Que temores. Outros sóis. Que estertores.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Lira dos vinte anos

Oh ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh nos meus sonhos, pelas noites minhas
Passam tantas visões sobre o meu peito!

Palor de febre meu semblante cobre,
Bate meu coração com tanto fogo!
Um doce nome os lábios meus suspiram,
Um nome de mulher... e vejo lânguida
No véu suave de amorosas sombras
Seminua, abatida, a mão no seio,
Perfumada visão romper a nuvem,
Sentar-se junto a mim, nas minhas pálpebras
O alento fresco e leve com a vida
Passar delicioso... Que delírios!
Acordo palpitante... inda a procuro;
Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas
Banham meus olhos, e suspiro e gemo...
Imploro uma ilusão... tudo é silêncio!
Só o leito deserto, a sala muda!
Amorosa visão, mulher dos sonhos,
Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!
Nunca virás iluminar meu peito
Com um raio de luz desses teus olhos?

(Manuel Antônio Álvares de Azevedo)

Wednesday, May 10, 2006

Viola de Lereno

Prometeu-me Amor doçuras,
Contentou-se em prometer;
E me faz viver morrendo
Sem acabar de morrer.

Em mim tome um triste exemplo
Quem amando quer viver;
Saiba que é viver morrendo
Sem acabar de morrer.

Cuidei que o gosto de Amor
Sempre o mesmo gosto fosse;
Mas meu Amor brasileiro
Eu não sei por que é mais doce.

Eu sei, cruel, que tu gostas,
Sim, gostas de me matar;
Morro, e por dar-te mais gosto,
Vou morrendo devagar.

(Domingos Caldas Barbosa)

Tuesday, May 09, 2006

Rises the Sun

Rises the Sun, and it lasts no more than a day,
After the Light the dark night comes,
In sad shadows beauty is gone,
In continuous sadness feeling gay.

If the Sun perishes, why did it rise?
If lovely is Light, why doesn't it still shine?
How beauty can transfigure itself this kind?
How this delight for feather lives?

But in the Sun, and in the Light, lacks steadiness,
In beauty there ir no constancy,
And feels sorrow in sadness.

Starts finaly the World through ignorance,
And any of the goods has by essence
Steadiness only in inconstancy.


(Gregório de Matos)
translated by LEo

Time

Time is the greatest treasure men can make use of. Although inconsumable, time is our best nourishment. With no measure I know, Time is like everything, our good with highest value. It has no begin, and no end. Rich is not the man who collects and weights himself in amounts of coins, nor those profligate person who lays hands and arms in wide fields. Rich is only man who learned, merciful and humble, to coexist with Time, approaching it with tenderness, not rebelling against its course, toasting rather with knowledge to receive its favors, but not its wrath. The equilibrium in life is essentially in its supreme good. And who knows for chance the rate to slow down or the amount of waiting that we should impinge on things, never takes the risk, when looking for them, of confronting yourself with what is not, for only the just measure of Time gives the just nature of things.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)
translated by LEo

Sunday, May 07, 2006

O tempo

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento. Sem medida que eu conheça, o tempo é como tudo, o nosso bem de maior grandeza. Não tem começo, não tem fim. Rico não é homem que coleciona e se pesa num amontoado de moedas, nem aquele devasso que se estende mãos e braços em terras largas. Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não se rebelando contra seu curso, brindando antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira. O equilíbrio da vida está essencialmete neste bem supremo. E quem souber com acerto a quantidade de vagar ou a de espera que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Friday, May 05, 2006

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

(Gregório de Matos)

Thursday, May 04, 2006

Vestido de Noiva

(...)

Ao sair do teatro, tomei conhecimento da reação do público, que de lá saiu discutindo, discordando, discorrendo. Remexido enfim. Bom teatro, o que sacode o público. Nelson Rodrigues sacode-o, e tem força nos pulsos.

(...)

Aqui é que se revela a força a um tempo realística e poética de Nelson Rodrigues. Nunca delirei alto em minha vida, e peço a Deus que me livre disso. Mas o subdelírio me é muito familiar: qualquer febrinha declancha na minha cachola aquela mistura estapafúrdia de realidade e sonho, tão terrível, mas tão cheia de sentido poético. A criação de Nelson Rodrigues é admirável.

(...)

Sem dúvida o teatro desse estreante desnorteia bastante porque nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade física. Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação.

(Vestido de Noiva, Flauta de Papel, Manuel Bandeira)

Nudez na Praia

O Brasil revolucionário em matéria de nudismo continua intratável. O nosso nudismo estava confinado às praias de banho e aos salões de baile: a polícia interveio nas praias. Falta que intervenha nos salões, reduzindo o v dos decotes. Então seremos um povo inteiramente moralizado, ao que parece.

(De Nudez na Praia, Andorinha, Andorinha, Manuel Bandeira)