Thursday, July 27, 2006

A dama no espelho

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheque ou cartas que confessem algum crime horroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelho que havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Da profundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelho italiano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também uma nesga do jardim além. Podia-se ver uma longa trilha de grama que se estendia entre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.

(...)

Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e a trilha do jardim com tanta fixidez e exatidão, que tais coisas pareciam mesmo estar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho - aqui tudo mudado e lá, tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro. Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, havia um perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transientes, ao que parecia, e dos que se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelho as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.

(A dama no espelho: reflexo e reflexão, Virginia Woolf)

Friday, July 21, 2006

Uma simples melodia

Tentou analisar esse tema, um de seus favoritos - a andada, a caminhada de diferentes pessoas até Norwich. Logo pensou na cotovia, no céu, nos panoramas. Os pensamentos e emoções de um caminhante são constituídos em grande parte por essas influências externas. Pensamentos de quem vai a pé vêm meio do céu; se pudessem ser submetidos à análise química, verificar-se-ia que eles contêm grãos de cor, que estão ligados a galões ou quartos ou quartilhos de ar. Era isso que logo os fazia mais rarefeitos, mais impessoais. Ali naquela sala porém os pensamentos se apertavam grudados, debatendo-se como peixes na rede, raspando escamas uns dos outros, transformando-se no esforço de escapar - pois toda a atividade mental era um esforço para fazer o pensamento escapar da mente do pensador transpondo ao máximo possível todos os obstáculos: toda sociedade é uma tentativa de apreender e influenciar e coagir cada pensamento, tão logo surge, e forçá-lo a ceder a um outro.

(Uma simples melodia, Virginia Woolf)

Tuesday, July 18, 2006

Life and Memory

You have to begin to lose your memory, if only bits and pieces, to realise that memory is what makes our lives. Life without memory is what makes our lives. Life without memory is no life at all... Our memory is our coherence, our reason, our feeling, even our action. Without it, we are nothing... (I can only wait for the final amnesia, the one that can erase an entire life, as it did my mother's...)

(Luis Buñuel)

Monday, July 17, 2006

Felicidade

O que soava em curiosa harmonia com o que ele tinha pensado e com a impressão de suave deslizamento de vida seguido de reajuste ordeiro, a impressão de pétala caindo e de uma rosa completa. Mas seria isso "felicidade"? Não. A palavra tão grande não parecia encaixar-se, não parecia referir-se àquele estado de ser que espiralava em lâminas rosadas em torno de uma luz refulgente. Fosse como fosse, disse mrs. Sutton, de todos os seus amigos ele era o que ela mais invejava. Ele parecia ter tudo; ela, nada. Ambos contaram - cada qual tinha dinheiro bastante; ela, um marido e filhos; ele, sua solteirice; ela estava com trinta e cinco anos; ele, com quarenta e cinco; ela nunca adoecera na vida e ele, como disse, era efetivamente mártir de alguma complicação interna - sonhava o dia todo em comer lagosta, mas não podia nem tocar em lagosta. Ora essa!, ela exclamou, como se enfiasse os dedos nalguma. Para ele, até sua própria doença era motivo de riso. Seria isso contrabalançar as coisas, ela perguntou? Seria senso de proporção, seria? Seria o quê, perguntou ele, sabendo muito bem o que ela queria dizer, mas acautelando-se diante dessa mulher insensata e destrutiva com seus modos estouvados, seu vigor e seus dissabores, que gostava de um rolo e travava escaramuças, que era capaz de abater e desfazer essa própria fruição tão valiosa, essa percepção do existir - duas imagens lhe vieram de relance e simultaneamente à cabeça - uma bandeira ao vento, uma truta num rio - equilibradas, balançadas, num fluxo de sensação límpida fresca clara luminosa lúcida tilintante invasiva que como o ar ou o rio o mantinha de tal modo aprumado que, caso ele movesse a mão, caso se dobrasse ou dissesse qualquer coisa, desalojaria a pressão dos inumeráveis átomos de felicidade que se uniam para suspendê-lo de novo.

(Felicidade, Virginia Woolf)

Sunday, July 16, 2006

Injured brother

It was Ana, Pedro. It was Ana. It was Ana, my hunger. Ana my infirmity. It was Ana my madness. It was her my breath. It was her my blade. She was my chill, my blow, my siege. It was me, injured brother. It was me, exasperated brother. It was me, brother with virulent smell. It was me, who had on the skin the spittle of many snails, the Devil's spoiled drivel. Bring me it at once, Pedro. Bring me at once the basin where we took bath as children, the tepid water, the gray soap, the rough bush, the white and fluffy towel. Wrap me up in it. Wrap me up in your arms. Dry my overturned hair. Let flow off tenderness, your soft hand on my nape. It's up to you, Pedro. To you. Who opened first the mother. To you pledged by holiness of being the first-born brother. It was Ana. It was Ana.

(...)

I saw my brother covering his face with his hands. It was sure he groped searching for a staff. He searched, certainly, for solid and hard soil. I could even hear his groan screaming for help. But looking at his posture deeply sudden and quiet, it was my father. It also happened to me that it could be a patience exercise in which he hid himself, consulting in the darkness the elders' texts, the noble and ancestral page. But in the flow of my intrigue it didn't count his pain mixed-up with the respect for letter of ancient. I had to scream in furor that my madness was wiser then the knowledge of the father. That my infirmity was in more conformity than the health of the family. My medicine were never written in any compendium. But there was another medicine, mine. And outside me I could not acknowledge any science. It was all a matter of perspective. And mine and only my way of seeing was valuable. It was a refinement of satiated, to test the virtue of patience with the hunger of third parts. And to say all this in a verbal access, turning the sermon's table on a eloquence, destroying fetters, latches and hawsers, rising a new balance and laying forces, rising always in highness. Stretching over all my clandestine muscles, rediscovering, with no delay, inside me the animal, scalp, jaw, and spurs, leaving the oiled tallow cover my sculpture while rode making my horsehair fly like feather, kneading with mine sagittarian paw the soft womb of this world, consuming in this pasture a grain of wheat and a fat slice of rage soaked in wine. I, the epileptic, the possessed, the taken. I, the starving, rolling in my confused speech the soul and the flame, a Veronica's cloth and a sneeze duded to such mud. Mixing in this soup of this flux the salty name of my sister, the perverted name of Ana. What dread. Other Suns. What anguish.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)
translated by LEo

Saturday, July 15, 2006

beyond ideas

The Brain - is wider than the Sky -
For - put them side by side -
The one the other will contain
With ease - and You - beside-



Out beyond ideas of right-doing and wrong-doing there is a field. I'll meet you there. -- Mevlana Rumi --

Wednesday, July 12, 2006

The Art of Conversation

"The real art of conversation is not only to say the right thing at the right place but to leave unsaid the wrong thing at the tempting moment."
-- Dorothy Nevill --

Tuesday, July 11, 2006

Contágio

A desgraça começa é a meia-idade. Pessoas como Jack nunca saberão disso, pensou ela; porque nem uma vez ele pensou na morte, nunca ele soube, pelo que disseram, que estava morrendo. E agora nunca pode lamentar - como era mesmo? - uma cabeça que encanece... pelo lento contágio das manchas do mundo... uma ou duas vezes antes já beberam seu trago. ... Pelo lento contágio das manchas do mundo! Ela se mantinha aprumada.

(Mrs. Dolloway em Bond Street, Virginia Woolf)


Do contágio da mancha lenta do mundo
Ele está a salvo, e não mais pode lamentar agora
Um coração que esfria, uma cabeça que embranquece em vão.

(Adonais, P.B. Shelley)



He has outsoared the shadow of our night;
Envy and calumny and hate and pain,
And that unrest which men miscall delight,
Can touch him not and torture not again;
From the contagion of the world's slow stain
He is secure, and now can never mourn
A heart grown cold, a head grown grey in vain;
Nor, when the spirit's self has ceased to burn,
With sparkless ashes load an unlamented urn.

(Adonais, Percy Bysshe Shelley)

Sunday, July 09, 2006

alexandrino

O nome alexandrino dado ao metro de doze sílabas deriva do Roman d'Alexandre le Grande, canção francesa em forma de gesta, começado no século XII por Lambert Licors e terminado no século seguinte por Alexandre de Bernay. Gestas eram poemas que celebravam grandes feitos.

flores


"Até nas flores se encontra
A diferença da sorte:
Umas enfeitam a vida,
Outras enfeitam a morte."

Friday, July 07, 2006

Delicadeza

Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível.
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher,
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratrícida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

(Elegia ao primeiro amigo, Vinícius de Morais)

Thursday, July 06, 2006

persona



Persona, palavra de origem Latina que significa literalmente "máscara". As personas eram utilizadas no teatro grego para que os atores incorporassem diferentes personalidades. As personas mudam, mas o ator, o Eu por de trás da máscara, continua presente comandando essas mudanças. Uma persona é como um segundo Eu, criado para proteger o verdadeiro Eu. Vendemos a nossa imagem pela maneira como nos apresentamos ao mundo. Nossa forma de defesa contra as crueldades do mundo é a persona, a máscara que esconde o nosso Eu interno e pretege-nos de sermos machucados. A persona externa é um elemento potencialmente mal e perigoso, ao invés de uma bonita e passiva cara por de trás da máscara.

Sunday, July 02, 2006

Un Coup de Dés



O Poeta foge de Paris e se recolhe à solidão da casinha de Valvins. Foi lá que concluíu, em 97, Un coup de dés, tão estranho, a todos os aspectos que o próprio Mallarmé, lendo-o para um amigo, perguntou-lhe depois: -- Est-ce que cela ne nous paraît tout à fait insensé? N'est-ce pas un acte de démence?

É de fato um ato de demência, mas o amigo poderia responder-lhe com as palavras de Novalis: "O poeta é verdadeiramente insensato, e é por isso que tudo acontece realmente nele. O poeta representa, no sentido próprio da palavra, o sujeito-objeto: a alma deste mundo".

"Mallarmé", conta Mauclair, "não nos ensinava. Mas fazia melhor que isso: pelo encanto de suas palavras e de sua pessoa punha cada um de nós em estado de poesia". Foi essa mocidade que, em 97, elevou Mallarmé ao posto de Príncipe dos Poetas, vago com a morte de Verlaine.

Nada porém, desarmava a incompreensão. É verdade que o poeta, por seu lado, nada fazia para desarmá-la. Ao contrário, cada vez se envolvia em névoas mais densas, ironicamente satisfeito de afastar de sua obra os espíritos superficiais, encantados de ver num escrito que nada lhes concerne à primeira vista. Diante da agressão de ininteligibilidade, preferia retorquir que a maioria dos contemporâneos não sabem ler senão jornais.

Às obscuridades naturais resultantes de seu conceito de poesia, juntou as de uma sintaxe própria, substancial e concentrada como uma fórmula algébrica. O que ele escrevia não parece produto do pensamento, mas o próprio pensamento em sua origem e evolução dialética, fecundo em incidentes atentos em se organizar num sistema indeformável à balancement prévu d'inversions.

(O Centenário de Sthéphane Mallarmé, Manuel Bandeira, conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras)

Un Coup de Dés (Mallarmé)