Sunday, December 16, 2007

to live in the past

I tend to live in the past because most of my life is there.
-- Herb Caen --

Thursday, December 13, 2007

Viagem nunca feita

Viagem nunca feita

E assim escondo-me atrás da porta, para que a Realidade, quando entra, me não veja. Escondo-me debaixo da mesa, donde, subitamente, prego sustos à Possibilidade. De modo que desligo de mim, como aos dois braços de um amplexo, os dois grandes tédios que me apertam – o tédio de poder viver só o Real, e o tédio de poder conceber só o Possível.

Triunfo assim de toda a realidade. Castelos de areia, os meus triunfos?... De que coisa essencialmente divina são os castelos que não são de areia?

Como sabeis que, viajando assim, não me rejuvenesco obscuramente?

Infantil de absurdo, revivo a minha meninice, e brinco com as idéias das coisas como com soldados de chumbo, com os quais eu, quando menino, fazia coisas que embirravam com a idéia de soldado.

Ébrio de erros, perco-me por momentos de sentir-me viver.


(O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Friday, October 12, 2007

Maneira de bem sonhar nos metafísicos

Raciocínio, – tudo será fácil e, porque é tudo para mim sonho. Mando-me sonhá-lo e sonho-o. Às vezes crio em mim um filósofo, que me traça cuidadosamente as filosofias enquanto eu, pajem, namoro a filha dele, cuja alma sou, à janela da sua casa.

(...)

Pulverização da personalidade. Não sei quais são as minhas idéias, nem os meus sentimentos, nem o meu caráter... Se sinto uma coisa, vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substitui os meus sonhos a mim próprio. Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou.

(Maneira de bem sonhar nos metafísicos, O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Marcha Fúnebre

Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.

(Marcha Fúnebre, Livro do Dessassossego, Fernando Pessoa)

Friday, September 21, 2007

Diário lúcido

Diário lúcido (Fernando Pessoa)

A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e de que só o primeiro ato se representou.

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.

O prêmio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como o não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles – tão complexo e sutil é o meu destino de sofrer.

Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim.

Como nunca descobri em mim qualidades que atraíssem alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim. A opinião seria de uma modéstia estulta, se fatos sobre fatos – aqueles inesperados fatos que eu esperava – a não viessem confirmar sempre.

Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém.

Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjeção.

É preciso certa coragem intelectual para um indivíduo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano, aborto sobrevivente, louco ainda fora das fronteiras da internabilidade; mas é preciso ainda mais coragem de espírito para, reconhecido isso, criar uma adaptação perfeita ao seu destino, aceitar sem revolta, sem resignação, sem gesto algum, ou esboço de gesto, a maldição orgânica que a Natureza lhe impôs. Querer que não sofra com isso, é querer demais, porque não cabe no humano o aceitar o mal, vendo-o bem, e chamar-lhe bem; e, aceitando-o como mal, não é possível não sofrer com ele.

Conceber-me de fora foi a minha desgraça – a desgraça para a minha felicidade. Vi-me como os outros me vêem, e passei a desprezar-me não tanto porque reconhecesse em mim uma tal ordem de qualidades que eu por elas merecesse desprezo, mas porque passei a ver-me como os outros me vêem e a sentir um desprezo qualquer que eles por mim sentem. Sofri a humilhação de me conhecer. Como este calvário não tem nobreza, nem ressurreição dias depois, eu não pude senão sofrer com o ignóbil disto.

Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético – e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia.

Ver claro em nós e em como os outros nos vêem! Ver esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no Calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade: Senhor, senhor, por que me abandonaste?

Diário ao acaso

Todos os dias a Matéria me maltrata. A minha sensibilidade é uma chama ao vento.

(...)

Ó grandes montes ao crepúsculo, ruas quase estreitas ao luar, ter a vossa inconsciência de, a vossa espiritualidade de Matéria apenas, sem interior, sem sensibilidade, sem onde pôr sentimentos, nem pensamentos, nem desassossegos de espírito! Árvores tão apenas árvores, com uma verdura tão agradável aos olhos, tão exterior aos meus cuidados e às minhas penas, tão consoladora para as minhas angústias porque não tendes olhos com que as fitardes nem alma que, fitável por esses olhos, possa não as compreender e troçá-las! Pedras do caminho, troncos decepados, mera terra anônima do chão de toda a parte, minha irmã porque a vossa insensibilidade à minha alma é um carinho e um repouso... (...)

(Diário ao acaso, O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Friday, June 08, 2007

Felicidade

Não creio alto na felicidade dos animais, senão quando me apetece falar nela para moldura de um sentimento que a sua suposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade. Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.

Só o absoluto de Hegel conseguiu, em páginas, ser duas coisas ao mesmo tempo. O não-ser e o ser não se fundem e confundem nas sensações e razões da vida: excluem-se, por uma síntese às avessas.

Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, é esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Tuesday, May 22, 2007

A loucura chamada afirmar

A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra.

Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.

Meu destino é a decadência.

Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Thursday, May 17, 2007

Passaram meses...

Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.

Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.

Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.

Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer - tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório!) poisada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anónimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!

Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que poisa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, directamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direcção do tecto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Sunday, April 29, 2007

perfeição

Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito.

O ódio surdo ao paraíso - o desejo como o da pobre infeliz de [que] houvesse campo no céu. Sim, não são os êxtases do abstracto, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu, mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada, e acabe o romance que não tinha enredo.

Para poder obter a perfeição fora precisa uma frieza de fora do homem e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição.

Pasmamos, adorando, da tensão para o perfeito dos grandes artistas.

Amamos a sua aproximação do perfeito, porém a amamos porque é só aproximação.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Saturday, March 17, 2007

Janela sobre o corpo

A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.

(As Palavras Andantes, Eduardo Galeano)

Monday, March 05, 2007

Pensar

Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de activo intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo - só aí, nesse morno e húmido não-ser, a abdicação da acção competentemente se atinge.

Não querer compreender, não analisar... Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo - a sabedoria é isto.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

more quotes

We live in a Newtonian world of Einsteinian physics ruled by Frankenstein logic.
- David Russell -

Where is human nature so weak as in the bookstore?
- Henry Ward Beecher -

No matter how rich you become, how famous or powerful, when you die the size of your funeral will still pretty much depend on the weather.
- Michael Pritchard -

Friday, February 02, 2007

dor e prazer

As grandes sensações de dor ou de prazer pesam tanto sobre o homem, que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças vitais. É depois que passa esse entorpecimento das faculdades, que o espírito, insigne químico, decompõe a miríada de sensações, e vai sugando a gota de fel ou de essência que ainda estila dos favos apenas libados.

(Lucíola, José de Alencar)

Friday, January 26, 2007

cada palavra falada nos trai

A nossa vida de adultos reduz-se a dar esmolas aos outros. Vivemos todos de esmola alheia. Desperdiçamos a nossa personalidade em orgias de coexistência.

Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros.

Explicar é descrer. Toda a filosofia é uma diplomacia sob a espécie da eternidade [_____], como a diplomacia, uma coisa substancialmente falsa, que existe não como coisa, mas inteira e absolutamente para um fim.

O único destino nobre de um escritor que se publica é não ter uma celebridade que mereça. Mas o verdadeiro destino nobre é o do escritor que não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo do que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve.

Escrever é objectivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio [?] evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o "mundo exterior" real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros com o universo que há em mim?

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Sunday, January 14, 2007

O sonho é a pior das cocaínas

O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate - mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.

Como um espectáculo na bruma

Aprendi nos sonhos a coroar de imagens as frontes do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e [a] dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da minha fixação.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Friday, January 05, 2007

Petrarca

Francesco Petrarca, Rime in vita e morta di Madonna Laura (1327).








Era il giorno ch'al sol si scoloraro
per la pietà del suo factore i rai,
quando ì fui preso, et non me ne guardai,
chè i bè vostr'occhi, donna, mi legaro.

Tempo non mi parea da far riparo
contra colpi d'Amor: però m'andai
secur, senza sospetto; onde i miei guai
nel commune dolor s'incominciaro.

Trovommi Amor del tutto disarmato
et aperta la via per gli occhi al core,
che di lagrime son fatti uscio et varco:

Però al mio parer non li fu honore
ferir me de saetta in quello stato,
a voi armata non mostrar pur l'arco.
It was the day the sun's ray had turned pale
with pity for the suffering of his Maker
when I was caught, and I put up no fight,
my lady, for your lovely eyes had bound me.

It seemed no time to be on guard against
Love's blows; therefore, I went my way
secure and fearless—so, all my misfortunes
began in midst of universal woe.

Love found me all disarmed and found the way
was clear to reach my heart down through the eyes
which have become the halls and doors of tears.

It seems to me it did him little honour
to wound me with his arrow in my state
and to you, armed, not show his bow at all.


http://italian.about.com/library/weekly/aa021600a.htm

Tuesday, January 02, 2007

o amor

"O amor nasce de si mesmo, de repente, sem que o suspeitem. Se ele viesse quando o chamamos e desaparecesse à vontade, não era o que é, uma fatalidade."

(Diva, José de Alencar)

viver

"Podíamos ficar onde estávamos, tranqüilamente sentados no sofá,... Para que serviria a vida, se ela fosse uma cadeia? Viver é gastar, esperdiçar a sua existência, como uma riqueza que Deus dá para ser prodigalizada. Os que só cuidam de preservá-la dos perigos, esses são os piores avarentos!"

(Diva, José de Alencar)