Tuesday, May 22, 2007

A loucura chamada afirmar

A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada ser feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra.

Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a mágoa estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.

Meu destino é a decadência.

Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Thursday, May 17, 2007

Passaram meses...

Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho estado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido frequente. Não tenho existido, tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.

Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.

Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.

Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer - tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo. Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório!) poisada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anónimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!

Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que poisa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, directamente, com um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direcção do tecto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Sunday, April 29, 2007

perfeição

Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito.

O ódio surdo ao paraíso - o desejo como o da pobre infeliz de [que] houvesse campo no céu. Sim, não são os êxtases do abstracto, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu, mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada, e acabe o romance que não tinha enredo.

Para poder obter a perfeição fora precisa uma frieza de fora do homem e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição.

Pasmamos, adorando, da tensão para o perfeito dos grandes artistas.

Amamos a sua aproximação do perfeito, porém a amamos porque é só aproximação.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Saturday, March 17, 2007

Janela sobre o corpo

A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.

(As Palavras Andantes, Eduardo Galeano)

Monday, March 05, 2007

Pensar

Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de activo intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo - só aí, nesse morno e húmido não-ser, a abdicação da acção competentemente se atinge.

Não querer compreender, não analisar... Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo - a sabedoria é isto.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

more quotes

We live in a Newtonian world of Einsteinian physics ruled by Frankenstein logic.
- David Russell -

Where is human nature so weak as in the bookstore?
- Henry Ward Beecher -

No matter how rich you become, how famous or powerful, when you die the size of your funeral will still pretty much depend on the weather.
- Michael Pritchard -

Friday, February 02, 2007

dor e prazer

As grandes sensações de dor ou de prazer pesam tanto sobre o homem, que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças vitais. É depois que passa esse entorpecimento das faculdades, que o espírito, insigne químico, decompõe a miríada de sensações, e vai sugando a gota de fel ou de essência que ainda estila dos favos apenas libados.

(Lucíola, José de Alencar)

Friday, January 26, 2007

cada palavra falada nos trai

A nossa vida de adultos reduz-se a dar esmolas aos outros. Vivemos todos de esmola alheia. Desperdiçamos a nossa personalidade em orgias de coexistência.

Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros.

Explicar é descrer. Toda a filosofia é uma diplomacia sob a espécie da eternidade [_____], como a diplomacia, uma coisa substancialmente falsa, que existe não como coisa, mas inteira e absolutamente para um fim.

O único destino nobre de um escritor que se publica é não ter uma celebridade que mereça. Mas o verdadeiro destino nobre é o do escritor que não se publica. Não digo que não escreva, porque esse não é escritor. Digo do que por natureza escreve, e por condição espiritual não oferece o que escreve.

Escrever é objectivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio [?] evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o "mundo exterior" real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros com o universo que há em mim?

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Sunday, January 14, 2007

O sonho é a pior das cocaínas

O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate - mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma.

Como um espectáculo na bruma

Aprendi nos sonhos a coroar de imagens as frontes do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e [a] dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da minha fixação.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Friday, January 05, 2007

Petrarca

Francesco Petrarca, Rime in vita e morta di Madonna Laura (1327).








Era il giorno ch'al sol si scoloraro
per la pietà del suo factore i rai,
quando ì fui preso, et non me ne guardai,
chè i bè vostr'occhi, donna, mi legaro.

Tempo non mi parea da far riparo
contra colpi d'Amor: però m'andai
secur, senza sospetto; onde i miei guai
nel commune dolor s'incominciaro.

Trovommi Amor del tutto disarmato
et aperta la via per gli occhi al core,
che di lagrime son fatti uscio et varco:

Però al mio parer non li fu honore
ferir me de saetta in quello stato,
a voi armata non mostrar pur l'arco.
It was the day the sun's ray had turned pale
with pity for the suffering of his Maker
when I was caught, and I put up no fight,
my lady, for your lovely eyes had bound me.

It seemed no time to be on guard against
Love's blows; therefore, I went my way
secure and fearless—so, all my misfortunes
began in midst of universal woe.

Love found me all disarmed and found the way
was clear to reach my heart down through the eyes
which have become the halls and doors of tears.

It seems to me it did him little honour
to wound me with his arrow in my state
and to you, armed, not show his bow at all.


http://italian.about.com/library/weekly/aa021600a.htm

Tuesday, January 02, 2007

o amor

"O amor nasce de si mesmo, de repente, sem que o suspeitem. Se ele viesse quando o chamamos e desaparecesse à vontade, não era o que é, uma fatalidade."

(Diva, José de Alencar)

viver

"Podíamos ficar onde estávamos, tranqüilamente sentados no sofá,... Para que serviria a vida, se ela fosse uma cadeia? Viver é gastar, esperdiçar a sua existência, como uma riqueza que Deus dá para ser prodigalizada. Os que só cuidam de preservá-la dos perigos, esses são os piores avarentos!"

(Diva, José de Alencar)

Thursday, December 28, 2006

Indignação

"Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos.

Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da alma de todos os que me cercam,

Tomar o sonho por real, viver demasiado os sonhos deu-me este espinho à rosa falsa da minha sonhada vida: que nem os sonhos me agradam, porque lhes acho defeitos.

Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me oculto o rumor da vida alheia ao meu olhá-la, do outro lado.

Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer coisa, como também se alegram do explicado, e se incluem na dor universal.

Eu não me queixo pelo mundo. Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Sofro e queixo-me, mas não sei se o que há de geral é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não?

Eu sofro, não sei se merecidamente (corça perseguida)

Eu não sou pessimista, sou triste"

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Friday, December 22, 2006

ideia brilhante

Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.

Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade.

Ao homem superiormente inteligente não resta hoje outro caminho que o da abdicação.

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Wednesday, December 06, 2006

português vs. espanhol

Em referência às vogais, a realidade da língua oral é muito mais complexa do que dá a entender o uso aparentemente simples e regular das cinco letras latinas vogais na escrita. O que há são 7 fonemas vocálicos multiplicados em muitos alofones. Os falantes de lígnua espanhola têm, em regra, dificuldade de entender o português falado, apesar da grande semelhança entre as duas línguas, por causa dessa complexidade em contraste com a relativa simplicidade e consistência do sistema vocálico espanhol. Portugueses e brasileiros, ao contrário, acompanham razoavelmente bem o espanhol falado, porque se defrontam com um jogo de timbres vocálicos menos e menos variável que o seu próprio.

(Estrutura da Língua Portuguesa, Joaquim Mattoso Camara Jr.)

Friday, December 01, 2006

Emoções Confusas

...no desalinho triste das minhas emoções confusas...

Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma verdade obtida. Desenrola-se-me na alma desatenta esta paisagem de abdicações - áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se emaranha e se visualiza pobre no desalinho triste das minhas sensações confusas.


(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, 47)

Monday, November 27, 2006

Five-Cent Nickel Again

só para lembrar um post antigo
http://leoca.blogspot.com/2005/07/nickel.html

Saturday, November 25, 2006

Biografia

Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.

Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações.

Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.

Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas...Intervalo...Nada.

De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo... Sim, croché...

(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

LITANIA

Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o céu.
(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Tuesday, November 07, 2006

cachorro-quente

Cachorro-quente (hot dog) era usualmente chamado de 'frankfurters' (em referência à cidade de Frankfurt na Alemanha), o nome 'cachorro quente' tornou-se popular apenas nos anos 1890. Em 1830, existiam rumores de que os cachorros de rua eram utilizado para se fazer salsichas; nos anos 1840, o termo 'sanduíche de cachorro' (dog sandwich) foi utilizado. Nos anos 18060 uma canção popular 'Der Deitcher's Dog' (escrita por Septimus Winner) cuja letra contém o seguinte


Und sausage is goot: Baloney, of course,
Oh! where, oh! where can he be?
Dey makes ‘em mit dog, und dey makes ‘em mit horse:
I guess dey makes ‘em mit he.


O termo 'cachorro-quente' foi pela primeira vez utilizado numa piada envolvendo o ofegar (pant) do cachorro que foi amplamente divulgado nos anos 1870 "What’s the difference between a chilly man and a hot dog? One wears a great coat, and the other pants." (Qual a diferença entre um homem friorento e um cachorro quente? Um veste um casaco, e o outro ofega.)


(veja mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Hot_dog)