Friday, March 04, 2005

Dois Animais Metafísicos

Dois Animais Metafísicos
(O Livro dos Seres Imaginários, Jorge Luis Borges)

O problema da origem das idéias acrescenta duas curiosas criaturas à zoologia fantástica. Uma foi imaginada em meados do século XVIII; a outra, um século depois.

A primeira é a "estátua sensível" de Condillac. Descartes professou a doutrina das idéias inatas; Etienne Bonmot de Condillac, para refutá-lo, imaginou uma estátua de mármore, organizada e proporcionada como o corpo de um homem e habitada por uma alma que nunca houvesse percebido ou pensado. Condillac começa por conferir um único sentido à estátua: o olfativo, talvez o menos complexo de todos. Um cheiro de jasmim é o princípio da biografia da estátua; por um instante não haverá senão esse
aroma no universo, que, um instante depois, será cheiro de rosa e, depois, de cravo. Se houver na consciência da estátua um único perfume, já teremos a atenção; se perdurar um perfume quando houver cessado o estímulo, teremos a memória; se uma impressão atual e uma do passado ocuparem a atenção da estátua, teremos a comparação; se a estátua perceber analogias e diferenças, teremos o juízo; se a comparação e o juízo voltarem a ocorrer, teremos a reflexão; se uma lembrança agradável for mais vívida que uma impressão desagradável, teremos a imaginação. Engendradas as faculdades do entendimento, as da vontade surgirão depois: amor e ódio (atração e aversão), esperança e medo. A consciência de ter atravessado muitos estados dará à estátua a noção abstrata de número; a de ser perfume de cravo e ter sido perfume de jasmim, a noção do eu.

O autor conferirá depois a seu homem hipotético a audição, a gustação, a visão e por fim o tato. Este último sentido lhe revelará que existe o espaço e que, no espaço, ele existe em um corpo; os sons, os cheiros e as cores tinham-lhe parecido, antes dessa etapa, simples variações ou modificações de sua consciência.

A alegoria que acabamos de relatar se intitula 'Traité des Sensations' e data de 1754; para esta notícia utilizamos o segundo volume de 'Histoire de la Philosophie', de Bréhier.

A outra criatura suscitada pelo problema do conhecimento é o "animal hipotético" de Lotze. Mais solitário que a estátua que cheira rosas e que, por fim, é um homem, esse animal não tem pele senão um ponto sensível e móvel, na extremidade de uma antena. Sua conformação lhe proíbe, como se vê, as percepções simultâneas. Lotze pensa que a capacidade de retrair ou projetar sua antena sensível bastará para que o quase incomunicável animal descubra o mundo exterior (sem o auxílio das categorias kantianas) e distinga um objeto estacionário de um objeto móvel. Esta ficção foi elogiada por Vaihinger; está registrada na obra 'Medizinische Psychologie', que é de 1852.

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