Monday, July 17, 2006

Felicidade

O que soava em curiosa harmonia com o que ele tinha pensado e com a impressão de suave deslizamento de vida seguido de reajuste ordeiro, a impressão de pétala caindo e de uma rosa completa. Mas seria isso "felicidade"? Não. A palavra tão grande não parecia encaixar-se, não parecia referir-se àquele estado de ser que espiralava em lâminas rosadas em torno de uma luz refulgente. Fosse como fosse, disse mrs. Sutton, de todos os seus amigos ele era o que ela mais invejava. Ele parecia ter tudo; ela, nada. Ambos contaram - cada qual tinha dinheiro bastante; ela, um marido e filhos; ele, sua solteirice; ela estava com trinta e cinco anos; ele, com quarenta e cinco; ela nunca adoecera na vida e ele, como disse, era efetivamente mártir de alguma complicação interna - sonhava o dia todo em comer lagosta, mas não podia nem tocar em lagosta. Ora essa!, ela exclamou, como se enfiasse os dedos nalguma. Para ele, até sua própria doença era motivo de riso. Seria isso contrabalançar as coisas, ela perguntou? Seria senso de proporção, seria? Seria o quê, perguntou ele, sabendo muito bem o que ela queria dizer, mas acautelando-se diante dessa mulher insensata e destrutiva com seus modos estouvados, seu vigor e seus dissabores, que gostava de um rolo e travava escaramuças, que era capaz de abater e desfazer essa própria fruição tão valiosa, essa percepção do existir - duas imagens lhe vieram de relance e simultaneamente à cabeça - uma bandeira ao vento, uma truta num rio - equilibradas, balançadas, num fluxo de sensação límpida fresca clara luminosa lúcida tilintante invasiva que como o ar ou o rio o mantinha de tal modo aprumado que, caso ele movesse a mão, caso se dobrasse ou dissesse qualquer coisa, desalojaria a pressão dos inumeráveis átomos de felicidade que se uniam para suspendê-lo de novo.

(Felicidade, Virginia Woolf)

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