Monday, May 15, 2006

Irmão acometido

Era Ana, Pedro. Era Ana. Era Ana, minha fome. Ana minha enfermidade. Era Ana minha loucura. Ela o meu respiro. Era Ana minha lamina. Ela meu arrepio, meu sopro, meu assédio. Era eu, irmão acometido. Era eu, irmão exasperado. Era eu, irmão de cheiro virulento. Era eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do Demo. Me traga logo, Pedro. Me traga logo a bacia de nossos banhos de meninos, a água morna, o sabão de cinza, a bucha crespa, a toalha branca e felpuda. Me enrole nela. Me enrole nos teus braços. Enxugue meus cabelos transtornados. Escorra depois ternura, tua mão grave na minha nuca. É isso que compete a você, Pedro. A você, que abriu primeiro a mãe. A você, que foi brindado com a santidade de irmão primogênito. Era Ana. Era Ana.

(...)

Vi que meu irmão cobriu o rosto com as mãos. Estava claro que ele tatiava a procura de um bordão. Buscava com certeza terra sólida e dura. Eu podia até escutar os seus gemidos gritando por socorro. Mas vendo-lhe a postura profundamente súbita e quieta, era o meu pai. Me ocorreu também que era talvez um exercício de paciência em que ele se recolhia, consultando no escuro o texto dos mais velhos, a página nobre e ancestral. Mas na corrente do meu trame já não contava a sua dor misturada ao respeito pela letra dos antigos. Eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai. Que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família. Que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios. Mas que existia uma outra medicina, a minha. E que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência. E que era tudo só uma questão de perspectiva. E o que valia era o meu e só o meu ponto de vista. E que era um requinte de saciados, testar a virtude da paciência com a fome de terceiros. E dizer tudo isso num acesso verbal, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, erguendo um outro equilíbrio e pondo força, subindo sempre em altura. Retesando sobretudo os meus músculos clandestinos, redescobrindo, sem demora, em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que o cebo oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho. Eu, o epiléptico, o possuído, o tomado. Eu, o faminto, rolando na minha fala conrussa a alma de uma chama, um pano de Verônica e um espirro de tanta lama. Misturando no caldo desse fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de Ana. Que temores. Outros sóis. Que estertores.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

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