Friday, May 26, 2006

Retrato / Espelho

Retrato
(Cecilia Meireles)

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Mais uma vez nos deparamos com a metáfora do espelho... "espelho, que fielmente duplica as aparências", segundo Borges. Simbolicamente, os espelhos comportam uma ambiguidade: ao mesmo tempo podem ser vistos como instrumento de devolução do Eu e também como instrumento de rapto da alma. O que seria então a face que ficou perdida no espelho? Aquela face por outrora alegre e vivida? Aquela face que o tempo erodiu? Tempo, esse agente avassalador que a nada perdoa... Tempo e espelho, metáforas de um tempo longínquo, ou de uma realidade que nunca foi? Existem universos em que tempo e espelho se confundem, enquanto o Eu vaga cataléptico pelo limbo. Eis o paradoxo da busca pela existência. Existência essa que não passa de um mero encontro fortuito. Um encontro entre as duas imagens refletidas no espelho. Como saber qual delas é real? Fato é que isto simplesmente não importa... pois não são duas, mas una.

1 comment:

Anonymous said...

Quanto às palavras... deixemos-as para depois... afinal, já dizia G.
Rosa, "pela palavra começa a confusão..."

:P