Saturday, September 16, 2006

exercício de precisão

Localizou-o debaixo de um pinheiro, sentado no chão, arrumando as pequenas pinhas caídas segundo um desenho regular, um triângulo isósceles. Na hora do alvorecer, Agilulfo precisava sempre dedicar-se a um exercício de precisão: contar objetos, ordená-los em figuras geométricas, resolver problemas de aritmética. É a hora em que as coisas perdem a consistência de sombra que as acompanhou durante a noite e readquirem pouco a pouco as cores, mas nesse meio tempo atravessam uma espécie de limbo incerto, somente tocado e quase envolto em halo pela luz: a hora em que se tem menos certeza da existência do mundo. Ele, Agilulfo, sempre necessitara sentir-se perante as coisas como uma parede maciça à qual contrapor a tensão de sua vontade, e só assim conseguia manter uma consciência segura de si. Porém, se o mundo ao redor se desfazia na incerteza, na ambiguidade, até ele sentia que se afogava naquela penumbra macia, não conseguia mais fazer florescer do vazio um pensamento distinto, um assomo de decisão, uma obstinação. Ficava mal: eram aqueles os momentos em que se sentia pior; por vezes, só às custas de um esforço extremo conseguia não dissolver-se. Aí, punha-se a contar: folhas, pedras, lanças, pinhas, o que lhe surgisse pela frente. Ou então colocava tudo em fila, arrumando em quadrados ou em pirâmides. Dedicar-se a estas ocupações exatas permitia-lhe vencer o mal-estar, absorver o desprazer, a inquietude e o marasmo, e retomar a lucidez e compostura habituais.
(O Cavaleiro Inexistente, Italo Calvino)

No comments: