Sunday, September 17, 2006

uma armadura vazia

Ainda era confuso o estado das coisas do mundo, no tempo remoto em que esta história se passa. Não era raro defrontar-se com nomes, pensamentos, formas e instituições a que não correspondia nada de existente. E, por outro lado, o mundo pululava de objetos e faculdades e pessoas que não possuíam nome nem distinção do restante. Era uma época em que a vontade e a obstinação de existir, de deixar marcas, de provocar atrito com tudo aquilo que existe, não era inteiramente usada, dado que muitos não faziam nada com isso - por miséria ou ignorância ou porque tudo dava certo para eles do mesmo jeito - e assim uma certa quantidade andava perdida no vazio. Podia até acontecer então que num ponto essa vontade e consciência de si, tão diluída, se condensasse, formasse um coágulo, como a imperceptível partícula de água se condensa em flocos de nuvem, e esse emaranhado, por acaso ou por instinto, tropeçasse num nome ou numa estirpe, como então havia muitos disponíveis, numa certa patente da organização militar, num conjunto de tarefas a serem executadas e de regras estabelecidas; e - sobretudo - numa armadura vazia, pois sem ela, com os tempos que corriam, até um homem que existia corria o risco de desaparecer, imaginem um que não existia... Assim havia começado a atuar Agilulfo dos Guildiverni e a esforçar-se para obter glórias.

(O Cavaleiro Inexistente, Italo Calvino)

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